LEITO DE MORTE

    A mulher entrou no quarto do velho padre enfermo, cumprimentou a amiga que havia estado a noite toda com ele e, em seguida, dirigiu-se ao padre, enquanto o beijava na testa: 

     — Como o senhor está hoje? Está se sentindo mais confortável? Dormiu bem à noite? Está com uma aparência melhor! 

A mulher estava mentindo, para animá-lo, mas sabia que não era verdade. O padre parecia cada vez mais fraco. Ele demorou a responder, dando um sorriso amarelado que em nada lembrava o sorriso contagiante que tinha quando mais jovem. Nem parecia um sorriso. Era mais parecido com uma expressão de dor ocultada pela tentativa de sorrir. Finalmente, ele disse bem baixinho: 

— Estou com medo... 

A mulher não entende o que ele diz, obrigando-o a repetir mais três vezes, até que ela entendeu. 

— Medo? Medo do quê? - perguntou ela, olhando para a outra acompanhante. 

O padre fechou os olhos respirou fundo diversas vezes, como se estivesse cansado, dizendo em seguida: 

— De morrer... 

Tentando animá-lo, ambas as mulheres começaram a dizer que ele não morreria tão cedo, que estava se recuperando bem e melhorando a cada dia. Que viveria muito tempo ainda. 

O velho padre fechou os olhos e ficou respirando com dificuldade, nada mais dizendo. 

A acompanhante que passara a noite cuidado do enfermo começou a arrumar os seus pertences em uma sacola, enquanto a que passaria o dia com o padre segurava-lhe uma das mãos entre as suas, às vezes acariciando-lhe o rosto enrugado e emaciado. Vendo que a outra acompanhante estava pronta para sair, deixou o padre adormecido e foi para o corredor junto com aquela. Conversaram rapidamente, cochichando, para não serem ouvidas. 

— Como ele passou a noite? Conseguiu dormir? 

— Adormeceu um pouco, mas acordou diversas vezes durante a noite, geralmente chorando. 

— De dor? 

— Não... angústia. 

— E o que os médicos dizem? Ele está recebendo acompanhamento home care, não está?  

— Sim, o médico vem vê-lo uma vez por semana. Na última vez, que estava cuidando dele era a Alice. Ela perguntou ao médico se não seria melhor levá-lo para um hospital e ele respondeu que o padre que ficar em casa e morrer aqui, cercado pelos seus paroquianos, e que a morte dele é uma questão de dias. 

— Meu Deus! Que triste! Infelizmente, a maioria do povo ao qual fez tanto bem nem sequer aparece para visitá-lo. Graças a Deus ele tem o nosso grupo do Apostado da Oração e da Legião de Maria, que se reveza, dia e noite, junto a ele. Alguns jovens e outros grupos já estão se engraçando com o padre jovem que está cuidando da paróquia. Já dão o nosso padre como morto. 

— Nem gosto de pensar nisso, senão meu coração se fecha e eu começo a pecar... 

— Eu sinto a mesma coisa... quero me manter em estado de graça, mas algumas pessoas me fazem mal e eu começo a julgar... 

As duas se despediram e a mulher entrou novamente no quarto e sentou-se ao lado do leito do padre, voltando a segurar-lhe a mão. O padre, então acordou e nada disse, apenas permaneceu fixando o teto com seu olhar desesperançado. 

 

O padre olhava para o teto e repassava sua vida. Inúmeras vezes ele fizera esse exame de sua vida, descobrindo que esta fora sempre uma quênosis, um esvaziamento dos sonhos que tivera ao longo dos anos.  

Lembrou-se da primeira grande dor de sua vida, quando perdeu sua linda e jovem mãe, tendo apenas 10 anos. Lembrou-se da última vez em que a vira com vida. Ela o colocou na cama, beijou-lhe a testa e saiu, deixando a porta do quarto aberta. Na manhã seguinte, foi acordado pela vizinha, que o fez escovar os dentes, lavar o rosto e tomar café. Em seguida, o levara à sua casa onde lhe deu a notícia. Ele nunca havia sentido uma dor como aquela. Não era como a dor física que sentira quando um caminhão quebrou-lhe o pé, fraturando os cinco dedos em três lugares. Nem como a dor de dente que certa vez nem o deixou dormir. Nada se comparava a essa cor. Pareceu atingi-lo em todo o seu ser, corpo e espírito. Começou a chorar copiosamente e foi abraçado pela vizinha, que também começou a chorar.  

Quantos sonhos alimentara em sua vida, que foram desfeitos pela própria vida! 

Desejava ser independente do pai, que tinha uma situação financeira muito boa, acima da média dos moradores do bairro em que moravam. Pela vontade do pai, ele e seus irmãos poderiam apenas dedicar-se aos estudos, enquanto o pai os pudesse sustentar. Tão logo teve condições, já trabalhando, foi morar sozinho. Mas para isso, teve se fazer muitas renúncias. O carro, que o pai lhe dera, acabou sendo vendido, obrigando-o a andar de ônibus, pois ter um carro acarreta muitas despesas. Estava trabalhando em uma grande empresa e ambicionava ser promovido e um dia chegar à diretoria executiva da empresa. Porém, tal não aconteceu. Ficou anos na mesma função e não recebeu nenhuma promoção e nem aumento, a não ser o dissídio coletivo da categoria. 

Uniu-se a um amigo e a uma colega de trabalho para abrirem uma academia de ginástica, já que a amiga havia se formado em Educação Física. Combinaram, ele e a colega, de pedirem para ser mandados embora para receberem uma indenização que lhes garantisse uma quantia para sobreviverem até que a academia estivesse funcionando. No dia em que foi pedir ao seu chefe para mandá-lo embora, conversou com a colega se estava tudo certo para pedirem a demissão. Ela garantiu que sim, mas não o fez. Em poucos dias, ela disse que era um passo muito grande para si, que estava insegura e que não daria prosseguimento ao plano da academia. O chão se abriu e o engoliu. Ele saiu do emprego e, embora tenha recebido a indenização da empresa em que trabalhava, tinha dois aluguéis para pagar: o do apartamento em que morava e do espaço da academia. Sentiu-se traído. Ele havia arriscado tudo e a colega... nada!  

O espaço que alugara era composto por três salas, banheiro, cozinha e pequena área de serviço, ficando em uma sobre loja em excelente ponto comercial. O que fazer? Conseguiu sublocar duas salas, uma para uma terapeuta e outra para um massoterapeuta. Abriu um sebo de livros e, devido ao pouco movimento, passou a fazer doces, bolos e tortas, oferecendo-os a diversas doceiras da cidade. Ele fazia os doces e seu colega, com quem havia combinado abrir a academia, fazia as entregas. Como o espaço era pequeno, saiu daquele espaço e mudou-se para um bem maior, onde além de produzir os doces, havia espaço para uma doceira. Passados alguns anos, mudou-se para um bairro mais nobre e comercial, abrindo uma bela doceira. Em pouco tempo, o sucesso fez com que abrisse um restaurante no mesmo bairro. Foram vinte a quatro almoços pagos e servidos no primeiro dia. Cinco dias depois, serviram cerca de cento e oitenta refeições, média que permaneceu nos meses seguintes. Já havia sonho de abrir uma filial. Mas, veio a tragédia. Após nove meses de existência do restaurante, seu amigo e sócio faleceu em um acidente. Mais uma vez ficou sem chão! Pensou em desistir de tudo, fechar o restaurante, mas... descobriu uma força dentro de si e reabriu o restaurante com o mesmo sucesso e qualidade, porém, já não tinha a mesma alegria. Em poucos meses, vendeu-o e usou o dinheiro para manter-se enquanto realizava um sonho. 

O sonho era ser escritor. Agora tinha tempo para dedicar-se integralmente à literatura e dinheiro para se manter por alguns anos. Entretanto, algo havia dentro de si. um desânimo crônico, uma acídia que o prostava. Foram dois anos tranquilos, mas pouco produziu. 

Voltou à faculdade, cursando Letras e destacando-se entre os demais alunos. Foi convidado para fazer pós-graduação, o primeiro passo para ser, futuramente, um professor universitário. Porém, a estrutura da universidade não lhe permitia aprofundar-se no tema que desejava. E deixou a universidade e foi lecionar em uma escola pública, na periferia de uma cidade periférica, à entrada de uma favela. Escola extremamente pobre e carente de muitos recursos. Trabalhou ali com prazer, procurando proporcionar sonhos e perspectivas de vida aos seus alunos. Foram quatro anos de desafios. Mas, um dia, próximo ao Natal, a tia de uma colega professora na mesma escola entregou-lhe um livreto fino com a história e todas as mensagens de Nossa Senhora dadas em Medjugórje. Que mudança em seu pensamento! Em sua vida! Em sua fé! Nem sabia que tinha fé, mas passou a ter uma sede de tudo o que se relacionava à Igreja Católica. Fez uma peregrinação a Medjugórje e sentiu-se chamado ao sacerdócio. Constava com quase quarenta anos de vida. 

                 Precisou abandonar tudo: casa, família, amigo, emprego, segurança, independência... E o fez com o coração alegre e disponível. Igualmente a outros cursos, destacou-se na Teologia e a todo instante diziam-lhe que um dia seria bispo. Isto afagava o seu ego, porém, testemunhava o sofrimento dos bispos devido a tantos comportamentos egocêntricos que estudantes e padres tinham e que manchavam tanto a igreja. Após ser ordenado presbítero, foi ser diretor no seminário da diocese. Ali começou o seu calvário, com maquinações e manipulações por parte dos seminaristas, o que se refletiu em sua saude. Trabalhou como formador por 16 anos, mas sem alegria. Nas paróquias pelas quais passou, procurou ser um bom pastor, mas sempre havia grupos que trabalhavam contra a unidade e até mesmo contra a santidade esperada da igreja. Os anos passaram-se rapidamente e sua saude declinava a cada ano. A perspectiva de ser bispo foi-se distanciando e esquecida; e mesmo que lhe convidassem, nunca aceitaria. 

O que angustiava mais o velho padre era perceber que o mundo estava cada dia mais sem Deus, sem amor, sem caridade. E ele sentia-se muito mal com isso e responsável por não conseguir atrair à igreja tantos jovens que estavam se perdendo no mundo. Sabia que seria cobrado por Deus um dia, quando, após a morte, estaria ante o Senhor. Era sua maior angústia neste final de vida. 

 

         Deitado na cama e olhando longamente para o teto, o velho padre sentiu a mão de sua cuidadora em sua face seca, magra e enrugada. Olhou para ela. 

— O senhor está bem? Deseja alguma coisa? Trouxe um creme de batata baroa que está uma delícia! Está do jeito que o senhor gosta. E trouxe também uns croissants.  

Ele aceitou, mas após poucas colheradas não conseguiu mais comer. Do croissant, apenas um pedaço. Voltou a olhar para o teto e seus olhos encheram-se de lágrimas. Em poucos instantes, chorava intensamente. 

— O que há? O senhor está sentindo alguma dor? Está precisando de alguma coisa? 

O velho padre chorava e meneava a cabeça negativamente. A mulher sentia-se angustiada e impotente, não sabendo o que fazer para acalmar o padre.  

— Pelo amor de Deus, padre, o que o senhor está sentindo? — e começou a chorar também. 

Vendo-a chorar, o padre tentou controlar sua emoção e, após longo tempo, disse: 

— Estou morrendo... e estou com muito medo... de não ir para o céu... de ir para o inferno... 

— Isso nunca vai te acontecer, meu querido padre. Não pense nisso! O senhor foi um excelente padre e ajudou muita gente. Eu testemunhei isso inúmeras vezes. O senhor é muito querido e amado. E se alguém não gosta do senhor, lembre-se de que Jesus também não agradou e acabou em uma cruz. Fique tranquilo! 

— Salmo 50... reze para mimo salmo 50... por favor... 

Rapidamente, a mulher abriu a Bíblia e encontrou o salmo pedido e começou a lê-lo em voz alta, junto ao leito do padre. 

Tende piedade, ó meu Deus, misericórdia!  
Na imensidão de vosso amor, purificai-me!  
Lavai-me todo inteiro do pecado,  
e apagai completamente a minha culpa!  
 
Eu reconheço toda a minha iniquidade,  
o meu pecado está sempre à minha frente.  
Foi contra vós, só contra vós, que eu pequei,   
e pratiquei o que é mau aos vossos olhos!  
 
Mostrais assim quanto sois justo na sentença,   
e quanto é reto o julgamento que fazeis.  
Vede, Senhor, que eu nasci na iniquidade   
e pecador já minha mãe me concebeu.  
 
Mas vós amais os corações que são sinceros,   
na intimidade me ensinais sabedoria.  
Aspergi-me e serei puro do pecado,  
e mais branco do que a neve ficarei.  
 
Fazei-me ouvir cantos de festa e de alegria,   
e exultarão estes meus ossos que esmagastes.  
Desviai o vosso olhar dos meus pecados  
e apagai todas as minhas transgressões!  
 
Criai em mim um coração que seja puro,   
dai-me de novo um espírito decidido.  
Ó Senhor, não me afasteis de vossa face,  
nem retireis de mim o vosso Santo Espírito!  
 
Dai-me de novo a alegria de ser salvo  
e confirmai-me com espírito generoso!  
Ensinarei vosso caminho aos pecadores,  
e para vós se voltarão os transviados.  
 
Da morte como pena, libertai-me,  
e minha língua exaltará vossa justiça!  
Abri meus lábios, ó Senhor, para cantar,   
e minha boca anunciará vosso louvor!  
 
Pois não são de vosso agrado os sacrifícios,  
e, se oferto um holocausto, o rejeitais.  
Meu sacrifício é minha alma penitente,   
não desprezeis um coração arrependido!  
 
Sede benigno com Sião, por vossa graça,  
reconstruí Jerusalém e os seus muros!  
E aceitareis o verdadeiro sacrifício,  
os holocaustos e oblações em vosso altar!   

Ouvindo a leitura do salmo, o velho voltou a olhar para o teto, seus olhos foram-se abrindo, sua respiração foi ficando mais difícil, arfante. A mulher lembrou-se que, um dia, o padre havia dito que gostaria de morrer ouvindo o canto litúrgico “O Senhor é Santo”. Com lágrimas nos olhos e a voz embargada, ela começou a cantar, segurando na mão do padre. Enquanto cantava, de repente, o olhar do padre suavizou, sua boca foi-se fechando e a respiração normalizou. Ele tentou dizer algo e não conseguiu. Relaxando sobre a cama, um lindo e sereno sorriso estampou-se em sua boca. Seus olhos se fecharam, a respiração cessou, mas o sorriso permaneceu. 

Estava morto!