O CHÁ

― ...você tem tanta personalidade!...
Clarice entrou em casa e trancou a porta, com um sorriso incontível de satisfação marcando-lhe o rosto.
Aquela frase, ouvida durante uma conversa corriqueira, foi recebida como um troféu que premiava todos os anos de luta para construir sua vida a seu modo, a mais distanciada possível das interferências de outras pessoas.
A casa em que vivia representava a si própria. Cada móvel, cada canto, cada objeto, por mais insignificante que parecesse, contava sua historia. A casa era seu refúgio, onde não levava ninguém, onde Clarice podia ser o que sempre quisera: Clarice, pura e simplesmente Clarice.
“Isto merece uma comemoração”, pensou de si para si. E comemorou, não fugindo de sua rotina, mas reiterando-a, pois a sua rotina era SUA, fazia parte de algo que, privilegiadamente, tinha: personalidade.
Com o sorriso impetuoso ainda nos lábios, Clarice dirigiu-se à sua cozinha e, como fazia todos os dias ao chegar em casa, encheu de água sua chaleira de vidro transparente e colocou-a sobre a chama de seu fogão.
Enquanto aguardava a fervura da água, voltou à sala, verificou se a porta estava realmente trancada e parou frente ao consolo coberto por porta-retratos. Olhou as fotografias, (algumas tão antigas) “quantas pessoas passaram pela minha vida e nada deixaram senão saudades!”. O retrato da mãe que morrera tão moça, elegante como ela o era agora. O pai, introvertido e fechado em seu próprio mundo. Amigos, parentes, animais, locais - tudo registrado e perpetuado naquelas fotografias.
Clarice novamente foi à cozinha e, vendo a água em ebulição, desligou o fogo. De cima da geladeira, tirou um vidro com o chá de sua preferência, pegou uma colher de sopa na gaveta do gabinete da pia e encheu-a com as ervas secas.
Como a garoa que escorre, lenta, na vidraça, despejou o conteúdo da colher sobre a água fervente, observando cada pedacinho da erva seca mergulhando e escurecendo a água com sua essência. Clarice tampou a chaleira e fixou o olhar na água que se opaqueava aos poucos, até transformar-se em chá. Usando o mesmo coador de prata com o qual a avo preparava chá, encheu a xícara de porcelana que fizera parte do enxoval da mãe, sem adicionar açúcar, afinal, precisava manter sua linha.
― ...você tem tanta personalidade!...
A frase continuava a ecoar em seus ouvidos.
Na sala, passando pelo espelho pendurado acima do consolo, parou, posicionou-se como se posasse para um retrato, levantou a xícara de chá em direção a seu reflexo e brindou: “A você, personalíssima!”
Abrindo um armário, Clarice retirou a sua caixa de lembranças. Sentia necessidade de recordar, de relembrar sua vida até aquele dia. Cartas, cartões de Natal, cartões, bilhetes, cadernos de dedicatórias, boletins escolares, convites para festas e casamentos, poemas.
Sentou-se no sofá e passou a rever cada papel ali guardado. A dedicatória da professora de Português, que lhe incutira o prazer pela leitura. Um bilhetinho da amiga Georgete ensinando-lhe a tomar banho frio para tonificar a pele, hábito que a acompanhava até hoje. Um cartão-postal de seu primeiro chefe, descrevendo as belezas de Porto Seguro, cidade que conheceu nas primeiras férias do emprego. Tantas e tantas lembranças... saudosas lembranças!
Clarice levantou-se com um suspiro e, mirando-se no grande espelho, lembrou-se da frase que ouvira, brindando novamente: “A você, que tem tanta personalidade”.
Levou a xícara à boca e o sorriso transformou-se num repuxo de asco. O chá estava frio e amargo. Clarice ainda teve o impulso de voltar à cozinha para fazer outro, mas estacou frente ao espelho. Pareceu reconhecer em seu rosto uma expressão da mãe. Olhou melhor... não seria do pai?! Mais detidamente reconheceu a avó. Na postura, a amiga Georgete. O olhar, sem dúvida, era da professora de Português.
De início vagarosamente e, em seguida, de maneira frenética, Clarice percorreu com os olhos toda a sala, decorada quase que totalmente com objetos presenteados.
Olhou-se novamente no espelho e não reconheceu a mulher que via.
― Quem é você? ― gritou. Quem é você?!
Num ímpeto, atirou a sua xícara de porcelana no espelho, quebrando-o em incontáveis fragmentos que se espalharam pelo chão, à sua volta.
Vendo-se refletida em pedaços nos cacos do espelho, Clarice esboçou um sorriso frio e amargo.
― Realmente... você tem tanta personalidade!...

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