A MALDIÇÃO DO PADRE



            As notícias a respeito de um vírus que começou a se espalhar pelo mundo a partir da China foram chegando aos poucos. Primeiramente, os noticiários falaram de um problema localizado. Em poucas semanas, não se falava mais de epidemia, mas em pandemia, pois começara a se espalhar pela Europa. Até os termos usados para descrever o que estava acontecendo eram estranhos às pessoas. Anunciava-se um “novo coronavírus”. Por que “novo”? Já houve algum coronavírus antes? Nunca ouvi falar nisso! “Covid-19”? Inicialmente, era difícil lembrar desse nome, que em alguns dias tornou-se parte das conversas familiares. Até o corretor automático do notebook desconhecia o termo e o assinalava como se a palavra tivesse sido digitada com erro, mas em poucos dias já estava sendo reconhecido pelo sistema.
            O Padre Cornélio assumira uma nova paróquia na cidade de Nilópolis, quando a pandemia do coronavírus já estava em processo de disseminação pelo mundo. Porém, parecia ser algo muito distante de sua realidade. Com seu jeito acolhedor, abraçava e beijava com alegria os seus fiéis. Poucos dias após sua posse na nova paróquia, houve um encontro que reuniu o povo católico do município para a abertura da Campanha da Fraternidade, um evento da igreja católica do Brasil que é realizado há décadas durante a Quaresma. Neste encontro, o padre coordenador da área eclesiástica regional que incluía Nilópolis transmitiu ao final da missa uma orientação para toda a Igreja católica em todo o mundo, notificada a ele pelo Bispo Diocesano: a partir daquele dia e até cessar o perigo de contaminação pelo coronavírus suspende-se o Abraço da Paz durante a liturgia da missa. Também fora da missa, no nosso contato diário com as pessoas,  evite-se cumprimentos com aperto de mãos e abraços, devendo haver um certo distanciamento físico entre as pessoas.
            Este apelo, ao menos no que se referia ao abraço da paz durante a missa, foi atendido imediatamente por Pe. Cornélio. No entanto, quando chegava nas comunidades onde iria celebrar, abraçava e beijava normalmente as pessoas, até fazendo gracejos a respeito do perigo de contaminação através desses gestos de carinho e acolhida.
            O que parecia tão distante da sua realidade, o Pe. Cornélio sentiu que estava se aproximando cada vez mais.
            Após o apelo feito durante a abertura da Campanha da Fraternidade, em meados de março, o Bispo diocesano enviou uma carta circular a todo o clero, intitulada “Entre o vírus e a fé”, a qual concluía dizendo que, após recordar as grandes pestes do passado que dizimaram milhares de pessoas em pouco tempo, “a atual crise pede aos cristãos as atitudes de sempre, mas que podem ser assumidas como compromissos novos. Primeiramente, a confiança em Deus, que cuida sempre de nós. A oração deve estar presente neste momento. Em nossas assembléias litúrgicas, na devoção da Via Sacra, nos encontros da Campanha da Fraternidade e na oração pessoal não pode faltar o clamor a Deus, para que nos livre do mal e nos ajude a encontrar os caminhos da cura. A solidariedade para com os sofredores é outra atitude que deve ainda estar presente. E uma solidariedade que nos comprometa também como cidadãos diante das autoridades, para que o cuidado da saúde seja uma das prioridades nas políticas públicas. Além disso, o sentido de responsabilidade diante dos irmãos nos leva a estar atentos às indicações que vêm da parte das autoridades para estender o cuidado a todos”.
            Ainda neste momento, o Pe. Cornélio sentia uma certa distância entre a realidade da pandemia que se espalhava rapidamente na Europa e Ásia e a realidade periférica em que vivia. Continuava a celebrar as missas nas suas Comunidades, a realizar reuniões para planejar as ações pastorais na paróquia e a visitar enfermos em suas casas. Por enquanto, a suspensão do abraço da paz nas missas parecia evitar o perigo que paulatinamente, mas também de forma inexorável, se aproximava.
            No dia seguinte ao envio dessa circular, uma nova mensagem do bispo convidava os padres a exortarem seus fiéis a orar, simultaneamente, através das difusões ao vivo pelos canais de televisão de inspiração católica, emissoras de rádio católicas e pelos meios digitais, do Terço da Esperança e da Solidariedade a ser transmitido às quinze e trinta horas para todo o Brasil em data estabelecida. O Pe. Cornélio difundiu esse convite em seu perfil no Facebook e nos seus grupos no Whatsapp e, através do computador, uniu-se em oração a milhares ou talvez milhões de brasileiros.
            Neste mesmo dia, o bispo assinou um decreto diocesano com orientações pastorais ante a realidade do coronavírus, então declarada “pandemia” pela Organização Mundial da Saude, visando “assumir medidas mais restritivas nos espaços diocesanos, a fim de favorecer a necessária prevenção e atender às determinações sanitárias emitidas pelas autoridades federal, estadual e municipal”. Com o decreto, os fiéis foram dispensados da obrigação de participar das missas dominicais e de outros dias de preceito, com base no Direito Canônico; foram suspensas todas as atividades pastorais e sociais realizadas  nas igrejas, como catequese, festas, reuniões, retiros e procissões, orientando mais uma vez para o cuidado com a higienização e a supressão temporária do abraço da paz, além da distribuição da comunhão apenas na espécie do Corpo de Cristo, preferencialmente na mão do fiel. Nas orientações pastorais que acompanharam este decreto, recomendou-se que idosos e outras pessoas incluídas no chamado “grupo de risco” não participassem das missas ou celebrações da Palavra; que as missas fossem celebradas diariamente, mesmo sem a presença do povo, orando especialmente pelos que sofrem, pelos agentes de saúde e pelo fim da pandemia; para evitar aglomerações, pediu-se que, nas igrejas com maior afluência de fiéis, multiplicassem-se a celebrações de missas; que as portas das igrejas permanecessem abertas para orações pessoais do povo. Seguindo as orientações sanitárias de permanecer-se em casa a maior parte do tempo, saindo apenas quando necessário, o decreto orientava para que nos lares aproveitasse-se a ocasião para reunir a família em oração e na escuta atenta à Palavra de Deus, como verdadeiras igrejas domésticas. Sendo um período de incertezas, pediu-se uma maior solicitude para com os sofredores e enfermos, cabendo particularmente aos padres e diáconos procurar os meios para assisti-los em suas necessidades. Ao final dessas orientações pastorais, o Bispo pediu aos fiéis compreensão na manutenção da fidelidade em relação ao dízimo, para assegurar os pagamentos dos compromissos paroquiais e das obras de caridade, e aos párocos e vigários que substituíssem os mutirões de confissões da Quaresma por atendimentos diários e pessoais, observando as recentes normas de prevenções.
            Foi com apreensão e certa angústia que o padre Cornélio recebeu estas orientações, sendo este o momento em que de fato tomou consciência de que algo muito grave estava acontecendo. Após ler e reler o decreto do Bispo, foi para a capela orar naquelas intenções. Em seguida, formulou mensagens para os seus paroquianos, que foram enviadas através das redes sociais, além de pequenos cartazes a serem fixados na Matriz e nas comunidades paroquiais. Estabeleceu dias e horários para as confissões pessoais, à noite durante a semana e na parte da manhã aos sábados. Na manhã seguinte, uma quinta-feira, o padre Cornélio começou a elaborar uma escala de celebrações para a Matriz e para as duas comunidades paroquiais a fim de proporcionar mais opções de missas, evitando, assim, aglomerações. Porém, na houve de tempo de colocar esta escala em prática, pois na sexta-feira, dois dias após aquele decreto que o angustiou, um novo decreto caiu como uma bomba na vida da Igreja: a suspensão das missas e celebrações da Palavra com a presença do povo.
            Naquela sexta-feira, o padre Cornélio acordou um pouco antes das seis horas da manhã e fez, ainda na cama, as suas primeiras orações pessoais. Em seguida, foi para a frente da casa cuidar de seus cachorros, limpando a área do canil e servindo a comida a eles. Voltou para seu quarto, tomou banho e após vestir-se, dirigiu-se à capela para as orações das Laudes. Tomou o seu café da manhã, conversou com a empregada da casa paroquial sobre o que estava acontecendo e, após o término da refeição, foi para o escritório trabalhar na preparação das novas escalas de missas. Iniciou ainda o planejamento de visitas aos idosos e enfermos que haviam sido orientados a se afastar das celebrações para evitarem uma exposição ao novo coronavírus que estava se disseminando. Depois, foi ver o noticiário, que focou a questão da epidemia iniciada na China e que ia avançando para a Europa, seguindo seu curso para as Américas. O governo federal com o Ministério da Saúde, os Estados e Municípios e suas Secretarias estavam incertos sobre o que fazer contra a Covid-19 que se espalhava rapidamente pelo mundo. Um confronto de poderes e vaidades impedia um acordo de como proceder ante o que estava acontecendo. O Estado do Rio de Janeiro emitira, no dia anterior, um decreto  com medidas restritivas para impedir a disseminação da Covid-19. Ao terminar de assistir ao noticiário na televisão, o padre Cornélio abriu seu notebook para ver as mensagens que haviam chegado ao seu e-mail, ao Messenger e pelo WhatsApp. Respondeu a algumas das inúmeras mensagens diárias e impessoais de bom dia e, por último, abriu a caixa de mensagens de seu e-mail. Chamou-lhe logo a atenção um e-mail da Cúria Diocesana com nova circular. Pelo novo decreto diocesano, este baseado no decreto do Estado do Rio de Janeiro, o Bispo, considerando o dever de cidadão cooperar com as autoridades civis em vista ao bem comum, e ante a gravidade do momento presente, que estava criando uma situação inusitada, cujas conseqüências para a vida humana ainda não se podia dimensionar, dispôs que a partir daquele dia todas a paróquias da Diocese, até disposição contrária, deveriam seguir algumas determinações, sendo que a primeira foi a celebração de missas sem a assistência do povo.
            Ao ler esta primeira de sete determinações diocesanas, o coração do padre Cornélio acelerou, uma pontada na base de sua coluna o fez erguer o tronco, dor esta que subiu pela coluna chegando à cabeça, quase o fazendo perder os sentidos. Respirando fundo, recuperou-se e continuou a ler as demais determinações.
            Os padres deveriam celebrar a missa diariamente e de forma privada, mas tendo presente as intenções do povo e a súplica pela superação da pandemia. Novo choque e a mente do velho padre trabalhando como se não tivesse apenas um cérebro, mas inúmeros dentro de sua cabeça, e conflitantes. Como celebrar missa de forma privada? Sozinho, sem ninguém para o diálogo existente na liturgia! Ficou olhando para a parede acima do notebook, olhar perdido, o pensamento paralisado. Levou algum tempo, ele não sabendo se foram segundos ou minutos, até conseguir dar continuidade à leitura do decreto.
            As igrejas deveriam ficar abertas, nos horários habituais, para permitir as orações pessoais do povo, devendo este guardar a devida distância uns dos outros, como estava sendo orientado pelos profissionais da saúde, sendo proibidas as orações em grupo.          Foram suspensas a celebrações de casamentos e batizados, salvos os casos urgentes, segundo o Código de Direito Canônico. Também foram suspensas as visitas habituais dos Ministros Extraordinários da Comunhão Eucarística aos enfermos, cabendo aos padres atender os casos mais urgentes, com as devidas precauções preventivas. Recomendou-se aos fiéis que assistissem a missa pelas emissoras de televisão católicas e, pela internet, aquelas promovidas pelas paróquias.
            Ao terminar de ler essas determinações, com os cotovelos sobre a mesa à sua frente, o padre Cornélio cobriu o rosto com as duas mãos, clamando a Deus em silêncio, sentindo-se impotente ante tal situação inesperada que mexia diretamente com a vida da Igreja e com seu ministério. Como a Igreja pode sobreviver com as missas sem o povo, sem as visitas aos enfermos, sem a recepção da Eucaristia pelos fiéis, sem a celebração dos Sacramentos do Batismo e do Matrimônio? E aqueles já agendados, alguns há meses? E as missas celebradas virtualmente? Quantas vezes o padre Cornélio pregara a respeito de pessoas que assistem às missas apenas pela televisão, sem participação real nas celebrações, sem vida comunitária, sem comprometimento, sem a recepção da Eucaristia, “comungando espiritualmente”, como muitos diziam! Para estes, o padre perguntava se, quando eles assistissem a um programa de culinária e o prato ficasse pronto, eles iriam “almoçar espiritualmente”. A Eucaristia tem de ser manducada, comida, recebida obrigatoriamente durante a missa, exceto em caso de enfermos ou alguma situação social que o impedisse. Agora, isso teria de ser a norma! E transmitir a missa pela internet? Ele sentia-se muito constrangido em aparecer em vídeos. Negava-se a atender ligações de vídeo em seu celular. E agora... transmitir a missa pela internet! Não! Havia muitas missas transmitidas pela televisão e pela internet. Ele não precisava transmitir a dele! Celebraria sozinho em sua casa, pelo povo e pela Igreja. Sentiu vontade de chorar. Na verdade, seus olhos ficaram cheios de água, escorreu apenas uma lágrima, mas sua angústia era tão grande que nem chorar ele conseguiu. O que seria da Igreja? O que seria de seu ministério? Qual o sentido de sua vida sem o contato direto com o povo? No início da pandemia, estava proibido abraçar. E como ele gostava de abraçar e beijar e acolher e conversar e brincar com o seu povo! E esta nova paróquia? Mal chegara, mal conhecia os seus novos fiéis, não sabia onde moravam, não tivera tempo de aprender seus nomes! Fizera tão poucas visitas aos idosos e enfermos...! Mais uma vez, olhando para a parede à sua frente, seu olhar se perdeu e seus pensamentos emudeceram.
            Quando conseguiu pensar novamente, o padre Cornélio chegou a exclamar oralmente: “Que Quaresma!”. Muitas vezes, observando os conflitos religiosos principalmente no Oriente Médio, diversos casos de intolerância religiosa com assassinatos de cristãos, ele exortava o seu povo a dar um testemunho vivo de sua fé, sem medo, sem renunciá-la. Dizia que se não assumíssemos e testemunhássemos a nossa fé cristã e católica, em algumas gerações voltaríamos a ser uma igreja de catacumbas. Jamais esperara que fosse um vírus que confinaria as pessoas em suas casas. Mas esta era a realidade! “Que Quaresma!”, repetiu. Jamais se sentira tão próximo do Crucificado como agora!
            No domingo seguinte, o Quarto Domingo da Quaresma, o padre Cornélio, pela primeira vez em toda a sua vida de presbítero, celebrou a missa sozinho na capela de sua casa. Teve muita dificuldade em fazê-lo. Não havia ninguém com que dialogar na liturgia, não havia quem ouvisse a sua homilia (por isso, nem chegou a pronunciá-la), não havia música, não havia leitores, não havia... havia, sim, angústia e solidão em seu coração. Suas missas duravam cerca de uma hora e meia, uma hora e quarenta minutos. Só a homilia ocupava um pouco mais de meia hora. Dizia a si mesmo que jamais conseguiria celebrar uma missa dominical em uma hora. Nem a de semana! O que dizer da missa de Domingo? No entanto, em sua casa, celebrando sozinho, a missa terminara em pouco mais de meia hora. Publicou nas redes sociais a homilia que havia preparado na esperança de atingir algumas pessoas, ao menos, com aquelas palavras que, baseadas na liturgia da Palavra daquele Domingo, exortavam o povo de Deus a viver na obediência ao Senhor como fonte de graça
No domingo anterior, o Pe. Cornélio vira pela televisão a imagem do Papa Francisco caminhando pela cidade de Roma vazia, para orar pelo fim da pandemia, primeiramente na Basílica de Santa Maria Maior, diante do ícone bizantino de Nossa Senhora invocada como Salus Populi Romani, e, mais tarde, caminhando como peregrino pela Via del Corso até a Igreja de São Marcelo al Corso, onde rezou ante um crucifixo milagroso que a história conta que em 1522, quando Roma foi assolada por uma peste, este mesmo crucifixo foi levado em procissão pelas ruas da cidade, pondo fim à epidemia de então. Roma, uma cidade que fervilha de tantas pessoas, moradores e turistas, em suas ruas, dia e noite, estava vazia. Que imagem terrível de se presenciar! De doer o coração! Na terça-feira passada, com o crescimento assustador dos números de infectados e de mortos, toda a Itália foi submetida ao confinamento e seus moradores orientados a não sair de casa, a não ser para trabalhar, fazer compras necessárias e ir à farmácia. Todo comércio foi fechado. Em comunicado da Santa Sé, revelou-se que Francisco havia rezado pelo fim da pandemia não apenas em Roma e na Itália, mas em todo o mundo, além orar pelos trabalhadores da área de saúde, médicos, enfermeiras e aos que, nestes dias, por seu trabalho, garantiram o funcionamento da sociedade.
No dia da Anunciação do Senhor, angustiado com o fechamento da igreja e com o distanciamento que se impôs entre ele e seu povo, o padre Cornélio tomou coragem e mesmo sem saber bem como, gravou uma mensagem ao seu povo falando sobre o triste momento pelo qual a humanidade estava passando, rezou o Angelus e encerrou a mensagem com uma bênção. Pensou consigo que, frente a esta pandemia, teria de se adaptar e descobrir novos meios para evangelizar e estar próximo de seus fiéis.
Se a imagem do Papa Francisco caminhando pela cidade de Roma vazia não saía da cabeça do padre Cornélio, o que aconteceu na última sexta-feira de março foi impactante. Ele havia divulgado um vídeo no qual o Papa Francisco convidava todos os católicos a se unirem a ele em oração naquela sexta-feira à tarde, ao final da qual ele daria a bênção Urbi et Orbi, para Roma e para o mundo. Junto com um número impensável de católicos e até pessoas de outras religiões, a imagem de Francisco caminhando fragilmente e cambaleante pela imensa Praça de São Pedro vazia, emocionou  profundamente o padre Cornélio, que assistia de seu computador, assim como a todos os que o viram. Sentia-se que o Papa carregava sobre si toda a dor do mundo. Tal cena intensamente profética superou aquela em que o Papa São João Paulo II, poucos dias antes de sua morte, à janela do Vaticano, tentou falar à multidão que se apertava na Praça sem o conseguir. A cena dos passos vacilantes de Francisco naquela sexta-feira com certeza entrou para a história como uma das mais emblemáticas dessa pandemia.
A primeira missa celebrada pelo padre Cornélio e transmitida pela internet aconteceu no domingo seguinte à bênção Urbi et Orbi do Papa Francisco. Estiveram presentes na igreja, além do padre, um diácono permanente, um músico, um coroinha e um paroquiano que ficou responsável por fazer a transmissão pelo Facebook a partir de seu telefone celular. Um pouco nervoso por não haver assembléia e por estar sendo filmado, ao longo da celebração o padre foi ficando mais tranqüilo. Porém, no momento da homilia, a qual dedicava um longo tempo para explicar as leituras bíblicas e se guiava pelo comportamento do povo para determinar o momento de terminá-la, por lhe faltar este parâmetro fez uma explanação mais direta e breve. Para ele, celebrar a missa assim foi uma provação, mas sentiu-se aprovado.
No entanto, conforme foram passando os dias e semanas, surgiram novos desafios e necessidades pastorais. Se a missa devia ser celebrada sem o povo, veiculada pela internet, a questão da recepção da Eucaristia pelos fiéis não acontecia. Voltou à mente do padre Cornélio a questão da “comunhão espiritual”, mas isso foi resolvido com nova orientação diocesana para que, após a missa, dentro de um tempo mais longo e limitado, sem aglomerações e com todos os cuidados de higiene e distanciamento entre as pessoas, os fiéis que tivessem participado da missa pela televisão ou internet poderiam ir à igreja comungar. Mas restava a questão dos enfermos e idosos que não podiam ir à igreja receber a Eucaristia. Ministros Extraordinários da Comunhão, geralmente idosos, não poderiam e nem deveriam visitar aquelas pessoas que estavam impossibilitadas de ir à igreja. O padre Cornélio, com muito critério e discernimento, à medida que os seus paroquianos vinham comungar, perguntava-lhes se havia em suas casas ou na vizinhança idosos e enfermos. Às respostas positivas, pedia que tais pessoas levassem a Eucaristia para aquelas. Algumas ficaram emocionadas com esta possibilidade de atender seus familiares; outras, porém, assustaram-se com a proposta feita pelo padre, respondendo que não eram Ministros. O padre Cornélio, então, dizia-lhes que se eram dignos de receber a Eucaristia também o eram para levar aos enfermos e idosos, e instituía-os como Ministros Extra-extraordinários da Comunhão durante este tempo de pandemia, orientando-os como proceder. “Estamos aprendendo a ser uma nova Igreja por causa dessa pandemia” repetia o padre para si e para aqueles com os quais tinha contato.
O próximo Domingo seria a celebração de Ramos, a partir do qual iniciaria a mais importante semana para a Igreja Católica – A Semana Santa. O mutirão de confissões na semana anterior a Ramos, que unia a cada noite em uma paróquia os diversos padres da mesma região pastoral para atender às confissões dos fiéis, foi cancelado. Cada padre, em sua paróquia, deveria proporcionar aos seus paroquianos a possibilidade de se confessarem, em dias e horários pré-determinados, respeitando-se – e esta orientação acompanhava todas as orientações pastorais – o distanciamento social entre padre e fiel, e evitando aglomerações.
Às vésperas da Semana Santa, a Diocese enviou a todas as paróquias três paginas com orientações para as celebrações da Semana Santa, orientações essas que tiveram como base dois decretos da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.
Em seus vários anos de sacerdócio, a Semana Santa deixava o padre Cornélio apreensivo e esgotado. Havia muitas celebrações e orações, muitas homilias a se serem preparadas, muita gente a ser atendida, muitos detalhes litúrgicos a serem respeitados. Mas sabia que não estava sozinho em relação a esta sensação de preocupação e esgotamento, tanto que a segunda-feira seguida ao Domingo da Páscoa é chamada de Pascoela, dia em que quase toda a Igreja repousa, com pouquíssimas atividades. Ao mesmo tempo, após a missa do Domingo da Páscoa, com todas as celebrações concluídas e sem muitos equívocos litúrgicos, a sensação de alegria espiritual era imensa. Mas neste ano de pandemia, a apreensão era por outras causas e o padre Cornélio a sentia ainda maior.
Nas novas orientações para a Semana Santa, além do incentivo às transmissões pela internet e ao vivo das missas e celebrações em horários determinados, sugeriu-se às famílias entrarem no espírito dessa Semana a partir das leituras bíblicas litúrgicas próprias a cada dia, acompanhadas das orações comuns à piedade popular, como terço, via sacra, meditação das dores de Nossa Senhora, Relógio da Paixão e outras. No Domingo de Ramos, dispensou-se a procissão externa, celebrando-se apenas internamente, usando outras formas previstas no Missal Romano; ao povo, foi recomendado que tivessem em suas casas ramos para serem abençoados ao acompanhar as celebrações transmitidas, marcando em seguida ao término da missa as portas e portões com os ramos, expressando assim o desejo de seguirem o Messias na Sua cruz, morte e ressurreição, ainda mais nestes tempos de dor e pandemia. A missa dos Santos Óleos, normalmente celebrada na Quinta-feira Santa, foi transferida para uma outra data mais oportuna a ser determinada. Na missa noturna, o Lava-pés foi omitido, e o Santíssimo Sacramento, que nesta noite santa é transferido em procissão para um espaço devidamente preparado, até a Vigília Pascal, permaneceria no Sacrário. A Via-Sacra da Sexta-feira da Paixão do Senhor também foi omitida como oração e procissão pública, assim como a Adoração da Santa Cruz com o beijo, devendo a imagem do Crucificado ser transmitida para que as famílias, em seus lares, a adorassem. Introduziu-se uma décima primeira oração às Orações Universais, por todos os que padecem a pandemia do Corvi-19. Na maior e mais significativa liturgia de todo o ano, a Vigília Pascal, na qual se celebra a Ressurreição de Jesus e sua vitória sobre a morte, omitiu-se a bênção do fogo e a procissão de entrada na igreja, mas não a bênção e preparação do Círio Pascal. No Domingo da Páscoa, sugeriu-se  que as igrejas que os tiverem, toquem os sinos anunciando a vitória de Cristo sobre a morte em três horários: às sete horas da manhã, ao meio-dia e às dezoito horas, e que as famílias, em seus lares, manifestassem a alegria da Ressurreição de Jesus com cartazes, panos brancos expostos e outros símbolos nas fachadas das casas, valorizando o almoço pascal com uma oração e uma bênção seguindo um modelo oferecido pela Igreja.
Embora a Igreja tenha se preocupado com todos estes detalhes, o coração do padre Cornélio ardia de dor por não poder celebrar junto com o seu povo mistérios tão incomensuráveis para a fé. Após ler todas as orientações, dirigiu-se à capela da casa paroquial – capela que nunca foi tão visitada por ele como no período que se seguiu ao confinamento provocado pelo coronavírus. Sentou-se na única poltrona que havia na pequena capela, inclinou a cabeça após olhar silente para o sacrário por alguns instantes, cobriu o rosto com as duas mãos e permaneceu assim por tempo indeterminado. Não conseguiu proferir nenhuma oração. O seu silêncio talvez tenha sido a oração mais eloqüente que já fizera em toda a sua vida.
Foi neste contexto da pandemia do coronavírus que se deu um episódio envolvendo o padre Cornélio e um morador próximo à sua Matriz.
Desde o começo do confinamento orientado pelas Secretarias de Saúde, o padre Cornélio fechou-se na casa paroquial, saindo apenas quando imprescindível e sempre usando uma máscara protetora que lhe cobria o nariz e a boca. Como pastor do rebanho católico de sua paróquia, deu inúmeras orientações ao seu povo para que ficasse em casa, saindo somente para resolver assuntos fundamentais ou fazer compras. Mas ele percebeu que a população em geral não respeitava tudo aquilo que lhe era orientado. Parecia que o mundo não estava sofrendo uma ameaça à vida humana e que o fechamento de vários comércios, escolas, restaurantes, praças, parques e acessos a praias era exagero e que nada grave iria acontecer. A maioria do povo se comportava como se estive em férias. Pessoas o dia inteiro nas ruas, andando para cima e para baixo, fazendo compras, reunindo-se em botecos, fazendo churrasco regado a muita cerveja e animado por pagode.
Padre Cornélio não queria profetizar, mas sentia que, por respeitarem mais as orientações dadas insistentemente para evitar a disseminação do Covid-19, os católicos talvez fossem os mais poupados das conseqüências da pandemia, ou seja, menos contaminados e menos mortos. Temia que, quando uns poucos membros da população que permanecia na rua fosse infectado, a pandemia se alastraria como fogo em um caminho de pólvora e explodiria o número de infectados e óbitos.
Sentia-se indignado quando pessoas passavam por ele, no caminho entre a casa paroquial e a igreja, e perguntavam-lhe em tom de brincadeira se ele estava com medo da pandemia. Chegou a ver um homem passando em um carro, no banco dianteiro do passageiro, mexendo com as pessoas que, em frente a um sacolão, aguardavam o momento para entrarem e fazerem as suas compras, mantendo uma distância segura entre si; o homem gritou que estava com o coronavírus e fingia espirrar na direção da fila. A vontade do padre Cornélio era soltar uma praga para o infeliz sujeito ser contaminado, mas sua condição de padre lhe recriminava tal pensamento. E, como a desculpar tais comportamentos, dizia de si para si que se até o Presidente da República e vários influenciadores sociais e lideranças não respeitavam as orientações dos órgãos de saúde, minimizando os efeitos e perigos da pandemia, como condenar pessoas ignorantes que nunca tiveram uma educação escolar adequada e nem aprenderam a refletir?
No bairro, havia um morador de rua, o Lambão, que muitas noites batia à porta da casa paroquial para pedir um “veneno” ao padre Cornélio. A primeira vez em que o Lambão lhe disse isso, o padre pensou que ele lhe estava pedindo drogas. Mas quando o homem passou a mão na barriga, o padre entendeu que ele queria comida. Embora a família desse morador de rua vivesse em uma casa próxima à igreja, ele não podia morar com ela, pois por estar sempre bêbado, criava confusões e brigas em casa. Nem a mãe, que havia morrido a cerca de dois anos, permitia que o filho entrasse em casa. A irmã também o proibia. Todos no bairro o conheciam, porém quase ninguém lhe dava assistência. A coordenadora da igreja Matriz costumava também alimentá-lo e permitia que ele tomasse banho em um dos banheiros da igreja. Por misericórdia, o padre nunca lhe negava alimento, a não ser que não tivesse feito comida naquele dia. Lambão batia à porta da casa paroquial e ficava gritando do lado de fora:
─ Meu padre querido... eu te amo!!!!
Os cachorros do padre latiam insistentemente todas as vezes que o Lambão tocava a campainha ou simplesmente ficasse ao portão gritando. No começo da pandemia – e foi nessa época que o homem começou a pedir comida ao padre –, devido aos cuidados que o padre tinha para atendê-lo, perguntava se o padre Cornélio tinha medo dessa doença. O padre lhe respondeu algumas vezes, já que ele repetiu a pergunta mais de uma vez, que tinha que se cuidar e que ele, Lambão, devia fazer o mesmo. Mas Lambão parecia totalmente alheio ao que estava acontecendo no mundo. Ele, por estar sempre alcoolizado, tinha a sua justificativa. Mas o padre Cornélio insistia com seus vizinhos próximos para se cuidarem, para não ficarem na rua sem proteção e aglomerados, bebendo muito na calçada ao som de música até tarde da noite.
Em uma noite em que o padre Cornélio estava servindo o jantar ao Lambão, alguns jovens que, ignorando todas as orientações dos órgãos de saúde, todos os dias ficavam bebendo e conversando em frente a uma das casas que ficava na mesma calçada da casa paroquial, um pouco mais abaixo, de onde estavam, começaram a chamar o Lambão e a caçoar dele. O grupo estava visivelmente alcoolizado, sem exceções, falando muito palavrão, não havendo uma só frase em que não apareciam as mesmas três palavras e expressões de baixo calão. Padre Cornélio ficou observando o grupo por alguns instantes a ver se algum jovem não iria de alguma forma incomodar o morador de rua. Um desses jovens tossia e espirrava muito, sem se preocupar em cobrir a boca e o nariz com as mãos. Quando começava a tossir por mais tempo, os amigos esticavam o braço para ele, oferecendo-lhe bebida de seus próprios copos, como se isso fosse ajudá-lo. O padre pensou consigo o quanto eles eram irresponsáveis e inconseqüentes  compartilhando o mesmo copo entre si.
Então, um deles puxou o que tossia e veio na direção do padre Cornélio. Abraçado ao amigo, que tremia um pouco, apesar do calor que fazia e tossia muito no seu ombro, o jovem, rindo, ofereceu seu copo com cerveja para o padre beber. E disse, rindo:
─ Esse é o melhor remédio que existe, padre! ─ e olhando para os amigos à distância, começou a rir alto, no que foi acompanhado pelos outros.
─ Vocês deveriam ir para casa e se cuidar para não correrem risco de serem infectados nesta pandemia – respondeu-lhe seriamente o padre Cornélio.
─ Isso tudo é exagero... é só uma gripezinha que vai passar logo...
Dizendo isso, o jovem soltou o amigo e colocou a mão em um dos ombros do padre e lhe disse, perto do rosto coberto pela máscara:
─ O senhor é legal... toma um golinho só...
Padre Cornélio aproximou sua boca do ouvido do jovem que o estava incomodando e, despertando em si uma certa ojeriza pelo bafo malcheiroso acrescido ao cheiro da cerveja, disse-lhe:
─ Daqui a alguns dias, quando você estiver morrendo, pense neste teu “remédio”... mas será tarde para voltar atrás.
O jovem afastou-se do padre, deu-lhe as costas e voltou para junto dos amigos, gritando que queria beber mais, até cair. Os amigos gritaram juntos, alegres, e continuaram a beber. Padre Cornélio rezou brevemente em silêncio para que Deus tivesse misericórdia desses jovens desesperançados, que encontravam nas drogas e na bebida o único sentido para suas vidas. Entristecido, entrou e fechou atrás de si o grande portão de ferro da casa paroquial.
Exatamente oito dias após este episódio, padre Cornélio foi avisado de que um jovem daquela rua havia morrido devido ao coronavírus. Não sabia quem era, mas pelo que lhe disseram, era aquele que tossia muito na noite em que foi provocado pelo grupo. Ficou sabendo que na madrugada daquela noite ele começara a passar mal, a ficar com falta de ar e foi encaminhado a um posto de saúde, que imediatamente o transferiu para um hospital. Em uma semana estava morto.
Alguns dias após, uma mulher que aparentava mais de cinqüenta anos, usando um top e um shortinho como se fosse uma jovenzinha, com a cabelo afogueado e desgrenhado, a pele ressecada e sem vida, exageradamente magra, parecendo nem ter musculatura, somente a pele sobre os ossos, com sinais de embriaguez logo de manhã e com um cigarro à boca tocou a campainha da casa paroquial. Padre Cornélio estava orando na capela, mas desceu imediatamente, interrompendo suas orações da manhã, pois era cedo demais para ser um vendedor ou os correios.  Olhando para aquela mulher com aparência doentia – ele percebeu logo que era viciada em bebida e cigarro pela sua aparência esquálida –, cumprimentou-a:
─ Bom dia! Pois não?
A mulher, com a voz trêmula e um tanto incompreensível, conseguiu com certa dificuldade dizer ao padre:
─ Meu filho tá morrendo... ele quer falar com você...
Padre Cornélio nunca tinha visto aquela mulher e não sabia quem era seu filho. Quando lhe disse isso, a mulher falou quase gritando e com raiva na voz:
─ Você jogou uma maldição nele... ele tá morrendo...
─ Maldição?! – exclamou o padre –. Do que a senhora está falando?
─ Outro dia você jogou uma maldição nele... o amigo dele morreu... agora ele tá morrendo...
─ Deve ser um engano! – admirou-se o padre –. Eu  nunca joguei maldição em ninguém... Eu sou ministro de bênçãos e não de maldição...
─ Ele disse que você jogou uma maldição nele...
A conversa entre eles chegou a um impasse, pois padre Cornélio dizia que não tinha amaldiçoado ninguém e a mulher insistia que ele tinha amaldiçoado o seu filho. Para por fim à discussão que não estava levando a lugar algum, o padre perguntou-lhe:
─ Onde está teu filho?
─ Tá internado lá no Rio.
─ O que ele tem?
─ Tá com essa doença nova...
─ O novo coronavírus? A Covid-19?
─ É... acho que é isso... ele tá morrendo porque você jogou uma maldição nele...
─ Eu não joguei maldição em ninguém... nem sei quem é o teu filho...
A mulher puxou de dentro do sutiã um retrato todo amarrotado e mostrou ao padre.
─ Aí meu filho...
No mesmo instante em que viu a foto, padre Cornélio reconheceu aquele jovem alcoolizado que fora ter com ele à sua porta duas semanas atrás. Ele fechou os olhos e suspirou fundo, jogando um pouco a cabeça para trás. Depois, tirou seus óculos e cobriu seu rosto com uma das mãos. Só conseguiu repetir:
─ Meu Deus, meu Deus, meu Deus...
A voz da mulher veio tirar o padre Cornélio de sua aflição.
─ E agora... o que você vai fazer? Meu filho tá morrendo por sua causa...
Ele, então, disse àquela mãe que em momento algum havia lançado uma maldição sobre o filho dela. O que ele dissera para o jovem foi simplesmente baseado no que ele observara. Tanto o filho da mulher quanto os outros colegas estavam se arriscando inconsequentemente em meio à pandemia que continuava a se espalhar, não apenas saindo às ruas, quando inúmeras campanhas pediam que as pessoas ficassem em casa, mas o fazendo sem qualquer cuidado, não usando máscaras, não mantendo o distanciamento social orientado, partilhando o mesmo copo ou garrafa entre si e, o que mais chamou a atenção, ignorando o estado de saúde de um dos amigos, que estava apresentando alguns sinais básicos dos infectados pela Covid-19, sinais esses que confirmaram a contaminação no dia seguinte, quando esse amigo do filho foi internado e veio a falecer em poucos dias. O padre não só não lançara uma maldição, como fizera uma oração silenciosa por aqueles jovens que se expunham irresponsavelmente ao coronavírus.
─ Foi isso o que aconteceu, minha senhora – completou o padre Cornélio –. Lamento muito por teu filho, mas ele está sofrendo as conseqüências de sua irresponsabilidade.
─ Você não pode ir no hospital ver meu filho e tirar essa maldição?
O padre Cornélio suspirou e levou às mãos à cabeça, não acreditando que a mulher não entendera nada do que ele acabara de dizer.
─ Senhora, eu lhe disse com todas as palavras que não lancei nenhuma maldição sobre teu filho, entendeu? Não o amaldiçoei. Não há nenhuma maldição. Ele está doente porque se expôs ao vírus. Além do mais, não é permitida a visita aos enfermos contaminados. Mesmo que eu fosse até lá, não poderia entrar e nem conversar com ele, ou dar-lhe uma bênção. As visitas estão proibidas até para os familiares mais próximos. A senhora está me entendendo?
A mulher parecia mais calma, mas não que houvesse compreendido tudo o que o padre lhe havia dito.
─ Minha sobrinha é enfermeira no hospital onde meu filho tá internado. Antes de ser entubado, ele contou pra ela que você tinha jogado uma maldição. Só você pode tirar essa maldição. Dá uma bênção nele...
Agora sua voz não tinha mais o tom de raiva, mas de súplica.
“O que fazer para acalmar essa mãe desesperada que tem medo de perder o filho?” pensou o padre Cornélio. “E como dizer ao filho dela que ele não tinha nenhuma maldição?”
─ A senhora me perdoe, mas nada posso fazer. Não tenho como chegar ao teu filho. Vou rezar por ele nas minhas orações pessoais e na missa de hoje que vou celebrar sozinho na capela da minha casa.
A mulher ouviu o que o padre Cornélio disse e ficou em silêncio, pensando no que o padre dissera. Alguns instantes depois, seu rosto se iluminou com uma esperança.
─ Vou falar com a minha sobrinha. Vou falar pra ela que você não pode ir no hospital, mas pode dar uma bênção pro meu filho pelo celular. Você pode dar uma bênção nele pelo celular? Você pode? Eu vou falar com ela agora...
Sem esperar a resposta do padre Cornélio, a mulher pegou o seu celular e ligou para a sobrinha, que não demonstrou boa vontade em fazer o que a tia pedia. Ele conseguiu ouvir baixinho o que a sobrinha dizia e a mulher à minha frente continuava implorando ajuda. Assim como fizera comigo, a mulher parecia não ouvir nem entender o que a sobrinha falava. Vencida talvez pelo cansaço ou pela impertinência da tia, a enfermeira consentiu em fazer o que lhe era pedido. Foi até o CTI onde o jovem estava internado e, com prudência, sem chamar a atenção, ligou a câmera de seu celular e aproximou-o do rapaz enfermo para que ele visse e ouvisse o que o padre lhe iria falar. Pela câmera da mulher, ela e o padre puderam ver o jovem entubado. A mulher, ao avistar o estado do filho, começou a chorar e a implorar ao padre que o abençoasse.
Antes da bênção, padre Cornélio disse ao rapaz que não lhe lançara nenhuma maldição, que ele aceitasse a palavra do padre, e que agora lhe daria uma bênção para o tranqüilizar e animar.
Recordando-se de uma bênção que sempre usava quando necessitava abençoar um enfermo, o padre Cornélio, olhando para o jovem enfermo através do celular que a mulher segurava à sua frente, traçou sobre si o sinal da cruz e, em seguida, com as duas mãos estendidas, orou:
─ Senhor nosso Deus, que enviastes ao mundo o vosso Filho para tomar sobre Si os nossos sofrimentos e suportar as nossas dores, nós Vos suplicamos por este nosso irmão doente: fortalecei a sua paciência e reanimai a sua esperança, para que possa, com a vossa bênção, superar a enfermidade e alcance, com a vossa ajuda, um completo restabelecimento. – Olhando para o jovem, padre Cornélio traçou o sinal da cruz no ar e concluiu a oração de bênção – Por Nosso Senhor Jesus Cristo, Vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém.
Ao terminar a oração de bênção, a mulher desligou o celular e foi embora, sem se despedir ou agradecer. O padre Cornélio ficou olhando para a mulher que, acendendo um cigarro, descia a rua devagar, sem olhar para trás. Ficou pensando sobre a alma humana, sempre tendendo a culpabilizar os outros pelas vicissitudes da vida, pois dessa forma exime-se da própria responsabilidade. O rapaz fora totalmente irresponsável em seu comportamento ante a pandemia, mas achava que a culpa de estar internado no hospital não era própria, mas do padre. Se até o presidente dos Estados Unidos preferia culpar a China pelas mortes em seu país do que assumir que demorou muito para tomar decisões eficazes que impedissem a disseminação do coronavírus, o que se dirá da população ignorante de nossas cidades. O padre Cornélio tinha a certeza de, caso o jovem se recuperasse e saísse do hospital, em nada mudaria o seu comportamento devido à sua ignorância em relação à própria vida.
Poucos dias depois, soube que aquele jovem morrera.
Naquela noite, sozinho na capela da casa paroquial, padre Cornélio celebrou a missa pela ressurreição do jovem e por todas as vítimas fatais do coronavírus. Não conseguindo mudar um pouco que fosse a realidade à sua volta, restava-lhe apenas orar.


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