A CASA DA BEATA


        
         Durante muitos anos, a caminho do trabalho, passei em frente a uma casa grande, centrada em um terreno repleto de árvores, lembrando uma pequena floresta. Mal se podia avistar a casa, mas percebia-se não ser pequena. Pelo estado dos grandes muros e da calçada, notava-se que o proprietário poderia ter sido rico no passado, mas devia, já a alguns anos, estar em decadência financeira.
         A poucos meses, avistei uma placa de “Vende-se” fixada no portão grande, aparentemente a única entrada para a propriedade. Todas as vezes que eu passava de carro, tinha a minha atenção chamada pela placa. Pela demora de meses para vender, imaginei que o preço devia ser muito alto e que talvez apenas uma empresa de construções tivesse condições de comprá-la para construir um conjunto de apartamentos em seu lugar.  Em um final de semana, não me recordo se em um sábado ou em um domingo, acordei com aquela propriedade em minha cabeça e, após o desjejum, peguei o carro e fui visitar a propriedade.
Lá chegando, um corretor de imóveis muito simpático me atendeu, abrindo o portão para que eu entrasse na propriedade. Fui entrando devagar e, dirigindo por uma alameda, cheguei à casa. O terreno era muito maior do que eu imaginava e as árvores que rodeavam a casa formavam uma mata fechada, que mal deixavam passar a luz do sol. No alto das árvores avistava-se bromélias e orquídeas em busca de luz, que, pelo tamanho, deviam estar a muitos anos apoiando-se nelas. Também pendia até o chão uma espécie de cipó bem fino, que unido a outros formava uma espécie de corda. Este cipó espalhava-se por toda a propriedade, em número incontável.
A casa era grande, com varanda envidraçada em uma das laterais. Uma porta dupla de madeira maciça era ladeada por duas janelas de cada lado. Pelo lado oposto à varanda, havia a entrada para a cozinha e a lavanderia. O corretor mostrou-me a casa que, apesar de grande, tinha poucos cômodos, todos espaçosos. Havia, no entanto, apenas um dormitório, enorme, com banheiro. Este era maior que o quarto do apartamento em que eu estava morando. A cozinha, pelo tamanho, era o sonho de todo chef, com uma grande bancada ao centro e um fogão industrial ligado por canos de cobre ao depósito de botijões de gás, do lado de fora da cozinha. A sala imensa era dividida em duas através de uma porta dupla de correr. Pelos cômodos, sancas e medalhões em relevo eram pincelados de dourado, dando um aspecto de envelhecimento e sofisticação. Os lustres eram de alabastro com muitas lâmpadas, e luminárias do mesmo material ornavam as paredes.
Observando todos os detalhes da casa, que precisava de alguns serviços de manutenção, mas nada que fosse emergencial, fiquei imaginando o absurdo do preço que seria pedido pelo imóvel. No entanto, quando o corretor me falou o valor, quase caí para trás, pois era muitíssimo abaixo do que eu havia imaginado. Perguntei-lhe o porque do preço ser tão baixo e ele me disse que muitas pessoas apareceram interessadas, mas desistiram por haver apenas uma suíte, ou seja, era uma casa para um casal sem filhos ou para uma pessoa solteira. Com o passar dos meses, os herdeiros foram diminuindo o valor do imóvel na tentativa de vendê-lo. Não tive coragem de regatear, pois estava muito barato e eu dispunha do valor para comprar à vista. Na semana seguinte a propriedade já era minha.
Não fiz nenhum trabalho de reforma ou pintura, apenas quis que fosse feita uma faxina rigorosa antes que eu colocasse os poucos móveis que eu tinha naquela verdadeira mansão. Como não conhecia ninguém naquele bairro, perguntei a um dos porteiros de um edifício de apartamentos ao lado se poderia me indicar alguma senhora para fazer a faxina. Deixei meu telefone com ele, mas alguns dias depois ainda não tinha nenhuma resposta. Passando pelo local a caminho do trabalho, parei em frente ao edifício e perguntei ao porteiro se ele tinha conseguido alguma faxineira. Ele respondeu-me que havia falado com várias que trabalhavam nos apartamentos do condomínio, mas nenhuma se dispôs ao trabalho. Uma delas, contou o porteiro, disse que não trabalharia ali nem por todo o dinheiro do mundo. Achei estranha essa fala e perguntei-lhe qual seria a razão dessa resposta. O porteiro sorriu e disse que a casa tinha fama de mal-assombrada, daí a dificuldade em conseguir alguém. Liguei para uma agência de empregos e consegui que a faxina fosse feita.
Cerca de duas semanas após adquirir a propriedade, em um sábado, fiz a minha mudança. Pelo espaço dos cômodos, foi muito fácil distribuir os meus parcos móveis.  Ao mudar de lugar uma antiga estante de madeira entalhada, que viera com a casa, descobri uma pequena porta trancada e sem maçanetas que a pudessem abrir, apenas uma fechadura. Procurei nas gavetas da estante e não achei chave que servisse. Telefonei para o corretor imobiliário que havia me mostrado a casa e ele disse desconhecer a existência dessa porta. Já estava ficando tarde, por isso resolvi esperar para chamar um chaveiro que abrisse aquela porta.
Passava das dez horas da noite quando fui para o quarto dormir, feliz por ser a primeira noite em minha nova casa antiga. Tomei um banho morno demorado e perdi a conta das vezes em que me ensaboei e lavei a cabeça. Após secar-me lentamente, vesti meu pijama e fui para a cama. Deitei-me e, ainda com a luz acesa, fiquei admirando as sancas e os medalhões do quarto. O sono começou a dominar-me, apaguei a luz e já começando a adormecer, de repente, ouvi como que uma voz ao meu ouvido dizendo-me algo ininteligível. Acordei assustado, acendi a luz, mas não havia ninguém mais no quarto. Fui até a janela ver se havia algum movimento do lado de fora da casa, mas não vi ou ouvi nada. Voltei para a cama e um certo medo dominou-me, impedindo-me de apagar a luz, que permaneceu acesa a noite toda, até eu acordar no domingo com a claridade do dia atravessando os vidros da janela.
Tomei banho e fui à padaria do bairro comprar pão para o café-da-manhã. Estava saindo a pé pelo portão, quando um casal de idosos passou por mim, caminhando. Sorri-lhes, desejando um bom dia. Eles fizeram o mesmo e a senhora perguntou-me:
− O senhor está morando nessa casa?
Ainda sorrindo, respondi-lhe:
− Sim, senhora, mudei-me ontem.
− Mudou-se com a família?
− Não, moro sozinho. Sou solteiro.
− O senhor é muito corajoso de morar aí sozinho. Eu nunca faria isso. Não nessa casa.
O marido deu um leve toque no braço da esposa e disse-lhe baixinho, como a repreender:
− Querida!
Ela fez um muxoxo, olhando com certo desdém para o marido. Perguntei-lhe, ainda sorrindo e até me divertindo com o encontro:
− Por que a senhora diz isso?
Ela respondeu-me como se eu tivesse perguntado algo muito óbvio:
− Ora, essa é a casa da Beata!
− E quem é a Beata?
− A Beata foi uma mulher que morou nessa casa durante muitos anos, fazendo muita caridade a mulheres grávidas sozinhas e crianças abandonadas pelos pais. Ela as acolhia e procurava um lar para elas. Foi uma verdadeira santa.
− Nunca ouvi falar dela – respondi. Há algum processo da igreja para canonizá-la? – perguntei. É por isso que a chamam de Beata?
− Não, ela não era católica. Era apenas uma pessoa rica que fazia o bem a quem não tinha nenhuma família.
− Se ela era uma santa, por que a senhora diz que nunca entraria nesta casa?  
− Porque a muito tempo essa casa é mal-assombrada! Quem já dormiu aí conta coisas que acontecem à noite, na escuridão.
− Que coisas? – Fiquei curioso.
− Sons estranhos, vozes, sensações de presenças na casa. Uma empregada minha, que fez faxina apenas uma vez, para nunca mais, e que tinha ouvido histórias sobre a casa, diz ter visto pela janela crianças brincando, mas quando foi ver de perto, não havia ninguém. Disse também que ouvia passos de alguém correndo pela casa e de portas abrindo e fechando.
Lembrei-me da noite anterior e da sensação de medo que me dominou, fazendo-me dormir com a luz acesa.
− Mas deve ser história que o povo inventa – respondi-lhe. Casas velhas sempre fazem barulhos.
O marido da senhora puxou-a pelo braço e fez sinal com a cabeça para continuarem a caminhar.
− Espero que você tenha sorte e que seja feliz nessa casa. – Completou a mulher. – Deus,  Nossa Senhora e São Miguel Arcanjo te protejam! – completou.
O marido, sem dizer nada, apenas fez uma pequena reverência com a cabeça e foi caminhando ao lado da esposa. Olhando-os se afastarem, percebi que ele falou algo baixinho ao seu ouvido e que ela puxou o braço, como a não gostar do que ele lhe dissera.
Fiquei ocupado durante o restante da manhã domingo, ajeitando algumas coisas que haviam ficado em caixas, principalmente livros. Preparei uma macarronada simples, com molho mediterrâneo de tomate, almocei e fui me deitar, aproveitando o resto do dia para descansar. Quando acordei, passava das quatro  horas da tarde. Fui até a sala, peguei na estante um livro que eu já havia começado a ler, sentei-me na minha poltrona de leitura e esqueci do tempo. Estava começando a escurecer quando acendi a luz da sala e da varanda contígua, voltando à minha leitura. Por volta das vinte horas preparei um lanche e um chá, tomei-os e voltei à leitura, só parando quando meus olhos ficaram pesados de sono, querendo fechar-se. Tomei um banho e fui para a cama, o corpo pedindo descanso. Apaguei a luz e adormeci no mesmo instante. Só despertei quando o relógio do celular tocou.
Durante a semana, não tive tempo de procurar um chaveiro para abrir a porta que eu havia encontrado atrás da estante. O som que eu havia ouvido na primeira noite e aquilo que aquela senhora havia me dito no domingo de manhã caíram no esquecimento. Eu estava feliz com a minha nova moradia.
No sábado de manhã, acordei com a decisão de procurar um chaveiro para abrir aquela porta sem maçaneta. Observando, durante a semana, que pela medição das paredes havia um espaço escondido atrás da porta, imaginei que fosse um armário. Enquanto a porta não era aberta, deixei a mente voar, pensando que talvez ali estivesse escondido um grande tesouro, que resolveria todos os problemas financeiros de minha vida e ainda poderia ajudar muita gente. Circulei de carro pelo bairro até achar uma pequena banca tipo de jornaleiro, indicando o serviço de chaveiro. Desci, conversei com o responsável, que se comprometeu a ir à minha casa logo após fechar a banca. Quando lhe dei o endereço e disse qual era a casa, ele me perguntou:
− Continua mal-assombrada?
− Não sei, acho que não, mas quem sabe? – respondi-lhe rindo. Uns dizem que sim e outros que não. Vá ver por si mesmo.
O homem riu e confirmou o serviço para mais tarde.
Após o almoço, o chaveiro chegou em casa. Teve uma certa dificuldade para conseguir abrir a porta.
− Essa fechadura é antiga. Não se fazem mais fechaduras assim. As de hoje em dia não duram nada e dão muito defeito. Esta é para toda a vida.
− E quem sabe até para outras vidas... – completei eu rindo, com uma voz em tom sombrio.
O chaveiro riu. Finalmente conseguiu abrir a porta. Retirou a fechadura para fazer uma nova chave. Além da porta, havia uma escadaria que descia em direção a uma completa escuridão. Achei um interruptor antigo de luz, mas não acendeu luz alguma. O chaveiro ficou à porta, tentando enxergar alguma coisa. Foi preciso dispensá-lo, pois a curiosidade dele o deixou parado, procurando descobrir alguma coisa. Depois que ele saiu, peguei uma lanterna e fui descendo aos poucos a escadaria. O cheiro que vinha daquele porão era de um ar úmido, viciado e bolorento. Comecei a espirrar e, por isso, amarrei um lenço sobre o nariz e a boca para não sufocar. Com a lanterna, verifiquei que o espaço estava vazio. Um simples porão, nada mais. Vi que havia um bocal de lâmpada no teto, mas vazio. Precisava lembrar de comprar uma lâmpada para colocar ali. Pensei que se forrasse piso, paredes e teto com revestimento cerâmico, poderia tornar-se um espaço útil para guardar materiais diversos, sem medo de se deteriorarem. Mais tarde, o chaveiro voltou e perguntou se eu havia descido ao porão e o que eu havia encontrado. Não entrei em detalhes.
− Desci, mas não havia nada. Apenas um porão úmido.
− Ah! – lamentou o homem, talvez esperando que eu encontrasse um tesouro escondido. Seu pensamento não havia sido diferente do meu, quando descobri a porta.
Naquela noite, acordei mais uma vez ouvindo o que pareciam vozes ao meu ouvido, igualmente sem entender o que diziam. Acendi a lâmpada do abajur e deixei-a acesa até amanhecer. Lembrei-me de orar, para que, caso houvesse algum espírito ali, me deixasse em paz. Eu, que não rezava a tanto tempo, lembrei-me das orações inteiras do Pai-Nosso, da Ave-Maria e até da Salve-Rainha. Voltei a dormir na claridade e não ouvi mais nada.
Com o passar dos dias, uma sensação estranha se repetia, embora não diariamente. Eu parecia sentir uma presença no quarto, sem, no entanto, ver nada. Quando sentia isso, um temor tomava conta de mim e eu acendia a luz, como se ela me fizesse sentir seguro.
Aquelas vozes continuaram me acordando algumas vezes, mas também comecei a sentir que algo tocava meus pés ou mexia nos lençóis. Às vezes meu sono era tão pesado que, mesmo sentindo aquilo, não conseguia abrir os olhos. Passei, então, a sentir como se andassem sobre a cama, pelas minhas costas. Pela profundidade dos passos no meu colchão, não parecia algo grande, mais como se fosse um cachorro andando às minhas costas.
Conversando com alguns colegas do serviço, uma senhora me disse:
− Pelo visto, parece espírito de criança. Não está fazendo mal algum, apenas brincando. Crianças adoram brincadeiras!
De fato, embora o meu temor, com certeza pelo desconhecido, o que eu estava sentindo e ouvindo não parecia querer me fazer mal. Continuei a rezar quando sentia algo no ar, mas com o tempo fui-me acostumando com o que se passava. Se fosse verdade o que a colega de trabalho dissera, um espírito de criança não procurava fazer o mal, apenas brincar. Tentava me confortar com essa ideia, mas, em seguida, sentia uma apreensão. O que o espírito de uma criança estava fazendo naquela casa? Voltando ao assunto com aquela colega de trabalho, que foi a única a acreditar no que eu dissera – os outros achavam que eu estava imaginando coisas −, ela me disse:
− Talvez alguma criança tenha sido enterrada ali. Quem sabe a casa foi construída sobre um cemitério.
Sem saber o que fazer, continuei a orar, pedindo paz para mim e para uma possível alma que, por alguma razão, não estava conseguindo ter o repouso eterno.
Certa noite, estava eu dormindo profundamente, quando senti que puxaram um dos meus pés com força. Aquele dia havia sido muito cansativo e tenso para mim em meu trabalho e eu só queria dormir, descansar, deixar passar aquele dia. Ao sentir o puxão, fiquei mais nervoso do que assustado e gritei:
− Pare com isso! Me deixa dormir!
Voltei a dormir e, ao despertar de manhã, lembrei-me do acontecido e comecei a rir. “Você deu bronca em um fantasma! Agora, sim, podem dizer que você está ficando louco!”
Depois dessa noite, nunca mais fui incomodado por qualquer barulho, vozes, toques ou sensações temerosas. Os dias foram passando e todas as noites passaram a ser tranquilas. Confesso que senti um pouco a falta daquilo que acontecia à noite, e um certo peso na consciência, pois se se tratasse do espírito de uma criança, ela tinha ficado assustada ou magoada comigo com o grito que eu dei e não tinha mais com quem brincar. Eu tinha assustado um fantasma! Com o passar dos meses, passei a achar que tudo era fruto da minha imaginação ou sonho.
Como o porão não tinha nada além do espaço com ar insalubre e eu não tinha, no momento, dinheiro para fazer a obra de revestimento cerâmico que pudesse melhorar o ambiente, esqueci-me dele por alguns meses. Um dia, em que estava fazendo compras no supermercado e passei pelo setor que tinha lâmpadas, comprei uma para colocar no bocal vazio que eu vira quando lá desci. Chegando em casa, fui guardar as compras e preparar o almoço. Coloquei a lâmpada no armário da cozinha e lá ela ficou mais algumas semanas. Alguns domingos mais tarde, lembrei-me do porão e resolvi colocar a lâmpada para iluminar o ambiente e ter uma noção correta de seu tamanho, para poder fazer um orçamento para sua reforma. Embora não fosse grande, o porão era maior do que eu supunha. Tinha cerca de 50 m2, o acabamento que haviam dado ao piso parecia de cimento queimado e pintado de verde, já quase todo desbotado. As paredes eram claras, sujas, com marcas de umidade, descascando, assim como o teto. O cheiro sufocante da umidade continuou a me incomodar e, mais uma vez, precisei cobrir o nariz e a boca com um lenço amarrado atrás da cabeça.
No sábado seguinte, chamei um pedreiro para fazer um orçamento do serviço de revestimento cerâmico. Ele ficou parado no meio do porão, olhando e olhando e olhando, sem nada dizer. Não fez medição alguma, apenas olhava. Pensei comigo que talvez ele nem soubesse o que fazer ou esperasse que as paredes lhe dissessem algo. Comecei a ficar impaciente e perguntei a ele:
− E então? O que o senhor acha? Dá para fazer o revestimento? Preciso que o senhor me forneça a metragem de piso e revestimentos e o custo da mão-de-obra.
O homem continuou a olhar sem nada dizer. Finalmente, caminhou até as paredes e começou a bater nelas com o punho fechado. Circulou o porão todo, batendo em todas as paredes. Em uma delas, em certo ponto, o som que emitiu foi oco. O pedreiro bateu várias vezes naquele ponto da parede, subindo a mão e descendo até quase o chão e depois falou-me com uma expressão de autoridade aquilo que eu já percebera:
− Este pedaço da parede está oco.
E calou-se, olhando para ela de cima a baixo, sem mais nada dizer. Precisei tirar-lhe novamente daquela contemplação.
− Que está oca eu percebi. Por que ela está oca? O que o senhor pretende fazer?
Mais momentos de contemplação e de silêncio do pedreiro. Comecei a xingá-lo mentalmente de incompetente e inútil. Nem deve saber o que fazer. Quando abriu a boca, disse, continuando a olhar para aquele ponto da parede de cima a baixo:
− Vai ter que quebrar para saber porque está oca.
− Sim, isso eu sei que precisa ser feito. Quando o senhor pode fazer isso? Hoje ainda?
− Hoje não trouxe minhas ferramentas. Venho no próximo sábado de manhã.
− Só daqui a uma semana? Não dá para o senhor vir amanhã?
Silenciou mais alguns instantes e, sem me olhar, respondeu:
− Amanhã não dá.
− O senhor não pode vir amanhã quebrar somente este pedaço para saber o que precisa ser feito. Não deve levar muito tempo.
Silêncio.
− Amanhã não dá.
Já ficando muito irritado e o xingando mentalmente, disse-lhe:
− Está bem, então. Sábado que vem o senhor vem quebrar para termos uma ideia do que precisa ser feito. Está bem? Mas, por favor, venha cedo. Quero resolver o problema deste porão o mais rápido possível.
Acompanhei o pedreiro até o portão e voltei para casa irritado com o homem.
No sábado seguinte, acordei faltando cinco minutos para a seis horas, com a campainha tocando sem parar. Era o pedreiro. Ele entendeu literalmente o cedo que eu lhe pedi. Vesti um roupão e fui abrir o portão para que ele pudesse entrar. Veio com uma sacola a tira-colo, na qual não cabia muita coisa. Ao chegarmos ao porão, eu lhe disse:
− O senhor não trouxe ferramentas para trabalhar?
Ele abriu a sacola e tirou um ponteiro de aço, uma talhadeira e uma marreta. Mostrou-as, sorrindo, com um ar de superioridade. Devolvi-lhe um sorriso amarelo, assentindo com a cabeça, sentindo que ele me fizera de idiota. Ele começou a bater mais uma vez em todas as paredes, atentando para o som que seus murros faziam. Eu lhe disse onde havia tido o som oco, mas ele ignorou-me totalmente, continuando até achar o lugar que eu lhe havia dito. Empunhando o ponteiro e a marreta, começou a abrir um buraco na parede. A poeira que levantou fez-me tossir e subi as escadas para respirar ar puro, dizendo-lhe que me chamasse quando terminasse de quebrar.  Alguns minutos depois, o pedreiro subiu a escada para me chamar. Havia quebrado um vão equivalente a uma porta, que dava para um outro espaço em total escuridão e com ar mais viciado e fétido do que o porão. Pela luminosidade da lâmpada que eu havia colocado no porão, o que foi iluminado adiante do vão aberto não permitiu ver qualquer parede que desse uma ideia das dimensões do local. Não sabendo o que havia dentro daquele novo cômodo escuro, e para evitar a curiosidade do pedreiro, paguei-lhe pelo serviço e o dispensei, dizendo-lhe que o chamaria assim que eu visse o que tinha lá dentro.
Depois que o pedreiro foi embora, peguei a lanterna e desci novamente ao porão, para ver o que havia além do vão aberto. O cheiro dentro era muito pior do que no primeiro porão. Com o facho limitado da lanterna percebi que o local era muito maior que o porão, mas não consegui ter a noção do seu tamanho. Também percebi que ali havia objetos, inclusive uma espécie de cama ao centro. Saí e fui a uma loja perto de casa e comprei um lampião a gás. Voltando à casa, acendi o lampião e desci mais uma vez ao porão. Com a luz do lampião, conforme eu fui entrando, o ambiente foi-se revelando. Era muito grande. Tentando localizar-me em relação à casa, percebi que ocupava o espaço correspondente ao meu quarto, banheiro e salas. A espécie de cama que eu havia visto era uma maca. Um armário de metal
enferrujado estava na parede próxima a essa maca. Com dificuldade, consegui girar a maçaneta do armário e abri-lo. Dentro havia uma série de ferramentas metálicas também enferrujadas e antigos frascos com medicamentos, algodão, gaze e mais coisas que não consegui identificar. Em duas das paredes, havia nichos de tamanhos variados fechados com tijolos. Dessa vez, não imaginei que pudesse haver tesouros escondidos atrás dos nichos. Minha intuição dizia-me que havia algo muito errado e macabro por trás daqueles tijolos. Com o lampião à mão, aproximei-me dos nichos e percebi que em cada um, escrito em um tijolo, havia um nome, alguns com sobrenome, outros sem, acompanhado de uma data. Passei a mão por vários daqueles tijolos, testando a firmeza do seu assentamento. Em um dos nichos percebi uma flexibilidade, sinal de que aquela parede de tijolos que o fechava não estava firme. Subi até a casa e peguei um formão e, voltando ao porão, tentei tirar um tijolo daquele nicho. Devagar, fui puxando o tijolo de um lado e de outro, o qual foi saindo aos poucos. Quando o tijolo estava quase todo para fora, a parede desabou quase em cima de mim, fazendo-me pular para trás, assustado. Horrorizado, dentro do nicho avistei um esqueleto.
Saí correndo escada acima, desesperado.
Parei de correr somente quando cheguei ao jardim e sentei-me, ofegante, em um banco de concreto. Demorou alguns minutos para minha respiração voltar ao normal, eu me acalmar e começar a raciocinar. Pegando o celular, não sabia para quem ligar, mas um número veio-me à cabeça: 190. Atenderam, eu narrei o acontecido e fiquei esperando a polícia vir à minha casa, o que aconteceu não muito tempo depois.
Nos dias seguintes, minha casa parecia um campo de batalha, com diversas viaturas entrando e saindo pelo meu portão, carros e repórteres de diversos canais de televisão, revistas e jornais, inclusive de outros países fazendo plantão ao meu portão. Embora eu estivesse em minha casa, meu acesso estava limitado ao meu quarto e banheiro. Ninguém me comunicava nada e, se me aproximasse para obter informações, mandavam-me afastar. O que descobri foi através dos meios de comunicação. Da janela eu via saindo da casa diversas caixas metálicas semelhante a caixões, sendo colocadas em viaturas. Não consegui contar a quantidade, mas foram muitas.
A história por trás daqueles cadáveres é terrível e quase inimaginável, envolvendo a Beata, antiga moradora daquela casa na qual eu morava e que a tinha construído.
Com já me haviam dito, a Beata era uma mulher que parecia ter dinheiro e que ajudava mulheres e crianças sem família e que estavam passando por dificuldades, não tendo para onde ir. Ela as acolhia e procurava um lar para cada uma. E foi através dessa ação de caridade que toda a história veio à tona, pois uma senhora moradora no bairro a décadas viu no jornal a lista com os nomes das crianças e mulheres encontradas gravadas no tijolo de cada nicho, conforme eu havia visto.
Essa senhora, já bastante idosa e que conhecera pessoalmente a Beata, certa vez acolheu em sua casa uma jovem que não tinha onde ficar. Sabendo do trabalho de caridade que a Beata desenvolvia, indicou à jovem que fosse procurá-la, pois com certeza conseguiria ajuda. Essa jovem deixou uma sacola com alguns poucos pertences pessoais, inclusive uma certidão de nascimento bastante deteriorada, e pediu à senhora que a acolhera em seu apartamento que guardasse a sacola até ela ter um local para ficar e vir buscar. A sacola ficou guardada no maleiro do guarda-roupa e ficou lá esquecido. Anos mais tarde, durante uma arrumação, a mulher achou a sacola e nem se lembrava do que se tratava. Abrindo-a, encontrou algumas roupas, uma fotografia em que a jovem aparecia ao lado dos pais falecidos e a certidão de nascimento. Deu as roupas e a sacola para os pobres e guardou a fotografia e a certidão, caso um dia a jovem viesse procurar.  Quando a notícia dos cadáveres passou a ser insistentemente veiculada na mídia, essa senhora pegou a certidão de nascimento e conferiu se o nome aparecia na lista dos mortos. De fato, ali estava.
Assim, aos poucos, a macabra histórica foi-se desvelando. Em um fundo falso do armário que estava no porão foi encontrado um caderno com anotações contábeis referentes a vários anos, com datas, valores e nomes, estes correspondendo aos nomes inscritos nos tijolos de cada nicho. Por fim, estavam anotados os nomes de órgãos do corpo humano passíveis de transplante abaixo do nome de cada pessoa.
Na caderneta havia, na última página, nome e telefone de um médico e de uma empresa de locação de ambulância. Aqueles telefones não mais existiam, mas o médico foi localizado, no entanto, já havia morrido a alguns anos. A empresa de locação de ambulância também não existia mais, porém, foi localizado o seu antigo dono, que cumpria pena em uma prisão, acusado que fora de traficar órgãos para fora do Brasil.
Dessa forma, fechou-se a história que envolvia a Beata, que fazendo-se passar por uma benfeitora de crianças e mulheres sem lares ou famílias, era na verdade uma assassina fria, que enriqueceu com o tráfico internacional de órgãos.
Após esta história terminar e voltar à normalidade a minha vida, pensei em vender a casa, mas foi-me desaconselhado pela imobiliária devido à terrível história que neste local havia acontecido. O preço havia caído ainda mais e eu teria um grande prejuízo. Eu não tinha saída, a não ser permanecer na casa por mais tempo, até ter condições de mudar-me.
A mudança passou a dominar meus pensamentos durante todo o dia, no trabalho e em casa. Eu dormia pensando na necessidade de mudar-me.
Certa noite, angustiado com essa situação, deitei-me e orei a Deus para me dar uma luz, indicando-me um caminho a seguir. Enquanto orava, um sono incontrolável me dominou. Apaguei a luz, virei-me de lado para dormir. Senti, então, como se alguém sentasse na cama às minhas costas. Fiquei imóvel, sem saber o que fazer. Senti, então, um suave beijo em meu rosto e uma voz infantil que sussurrou-me ao ouvido: “Obrigada!”. Ao invés de me assustar, lembro-me que sorri e relaxei, parecendo ouvir o som de uma criança rindo enquanto eu mergulhava em meu sono.


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