A HISTÓRIA DE RUTE




        Rute parou em frente ao espelho que havia na sala, acima do aparador, ajeitando o cabelo, que nada tinha para ser ajeitado. Meneou a cabeça, confirmando não haver nenhuma mecha fora do lugar. Em seguida, foi até a janela que dava para a entrada da casa, esticando o pescoço, procurando ver melhor a rua.
     Sentada à poltrona próxima à janela, Raquel, irmã de Rute, pousou às pernas o livro que estava lendo e sorriu.
        − Rute, pelo amor de Deus, sente-se e acalme-se. Ainda é cedo para ele chegar.
     Sentando, inquieta, Rute não conseguiu ficar parada e logo estava em pé novamente, andando de um lado a outro. Sentindo a respiração ofegante, abriu a janela para entrar ar fresco. E ficou à janela, olhando para fora a esperar por ele.
         Ele. O único homem que amou em sua vida e que, após mais de quatro décadas ausente, estava voltando para visitá-la. Raquel, que o encontrara casualmente na semana anterior, disse que Arthur ainda era um belo homem, apesar de sexagenário. O corpo mostrava os sinais dos tempos, mas os olhos vívidos continuavam os mesmos.
         Recordando as palavras da irmã, Rute voltou ao espelho para olhar-se. Em seu rosto também as marcas do tempo estavam presentes, mesmo assim, julgava-se ainda uma mulher bonita e atraente. Talvez não fosse assim e apenas havia-se acostumado com sua aparência. Mas havia se arrumado e maquiado da melhor forma possível, para causar boa impressão.
        Virando-se para a sala, ficou parada próxima ao aparador, olhando os móveis e a decoração que permaneciam os mesmos, como a mãe havia deixado ao morrer. O que parecia diferente era Raquel, envelhecida, enrugada, cansada. Estava sentada naquela poltrona, como fizera a vida toda, com um livro ante os olhos. Quantos livros terá lido na vida? Assim como ela, nunca havia se casado, nem viajado, ou festejado, vivendo a vida de personagens que autores haviam criado.
− Não sei como você consegue ficar aí parada, lendo esse livro, como se nada estivesse acontecendo! − disse Rute à irmã.
− E o que está acontecendo de tão importante que devo parar a minha leitura? − respondeu Raquel com tranqüilidade. Arthur ficou de passar aqui hoje, ainda é de tarde e há muitas horas pela frente antes de acabar o dia. Sente-se também e aguarde. Pegue um livro, faça tricô, durma... qualquer coisa, mas pare de andar de um lado para outro como barata sonsa.
− Você sempre foi assim... insensível ao meu sofrimento.
− Pelo amor de Deus, Rute, não crie um drama. Você sempre gostou de se fazer de vítima, achando que o mundo inteiro gira à sua volta. Se está feliz, quer que todos sorriam consigo, se está triste, todos devem chorar junto. Andar para lá e para cá não vai ajudar o tempo a passar, só gastar o tapete.
Rute resmungou algo ininteligível, olhando para a irmã com o semblante fechado, mas Raquel nem percebeu, entretida com seu livro. Sentou-se, tentou folhear uma revista, mas levantou-se pouco depois e caminhou para a janela. Em seguida, foi até a estante, abriu uma das portas e pegou um álbum de fotografias e um pequeno pacote de cartas amarradas com uma fita vermelha de cetim. Essas cartas e as poucas fotos que havia em uma das páginas do álbum eram as únicas recordações de seu relacionamento com Arthur.



        Ela estava iniciando o curso Normal quando conheceu Arthur, que cursava o último ano do Científico. Rute não tencionava ser professora, mas a mãe lhe dissera ser bom fazer o curso, apenas por uma questão de cultura. Não precisaria preocupar-se em trabalhar, embora naquela época um professor ganhasse bem e muitos maridos acompanhavam as esposas professoras para onde fossem transferidas, quando o salário delas era superior ao deles. No entanto, o pai de Rute havia deixado uma herança que permitia à mãe e às duas filhas viverem confortavelmente pelo resto de suas vidas.
           Arthur era o homem mais lindo que Rute havia visto na vida. Ela o observava de longe, durante o recreio, mas nunca teria coragem de se aproximar dele, por ser tímida, por nunca antes ter tido um namorado e porque ele estava sempre rodeado de garotas. Rute achava-as vulgares por se insinuarem a ele, mas notava que ele estava sempre sorrindo e dando atenção a todas. Não o via como um garanhão, mas como um homem gentil que não as queria magoar. Em casa, e mesmo na escola, à distância, sonhava com aquele homem lindo e simpático como fosse ele um príncipe encantado e ela uma espécie de Cinderela, embora fosse linda e rica, ao contrário da Gata Borralheira, que tinha sua beleza escondida pelos seus andrajos e pela pobreza.
       Certa tarde, já no final do ano letivo, em que Rute subia as escadas em direção à sala de aula, viu Arthur à sua frente, descendo. Quando o viu ficou tão desconcertada, que um de seus pés vacilou no degrau, ela escorregou e, para apoiar-se, deixou seus livros e cadernos caírem. Imediatamente Arthur veio em seu socorro e, como no conto de fadas, pegou a sapato que escapara do pé e ajudou-a a calçá-lo novamente. Juntou os livros de Rute e, sem entregá-los a ela, perguntou se estava bem e se não havia se machucado. Ela, timidamente, respondeu: “Só meu ego”. Arthur riu da resposta espirituosa, o que a levou a rir também. Ainda com os livros dela na mão, deu-lhe a outra e a convidou a sentar-se em um banco no pátio central da escola. Rute aceitou e desceu com ele os poucos degraus que subira e sentaram-se.
         Não tiveram muito tempo para conversar, pois alguns minutos depois o sinal para a entrada soou. Mas os poucos minutos em que conversaram deixaram Rute literalmente encantada. Arthur lhe disse que já a havia observado de longe e que, ao contrário de tantas jovens que o cercavam e se insinuavam a ele, ela, Rute, nunca o fizera. Perguntou-lhe se tinha namorado e ante a negativa, disse-lhe que ela era linda demais para ficar sozinha, o que levou Rute a corar, mas felicíssima com esse comentário. Nesse instante, o sinal de entrada tocou e Arthur, com os livros de Rute nas mãos, acompanhou-a até a sala de aula, o que causou muitos comentários e ciúmes entre algumas garotas.
         Naquele dia, foi difícil para Rute concentrar-se nas aulas, só pensando em Arthur, seu lindo príncipe com nome de rei. À saída, encontrou Arthur à porta da escola rodeado de garotas. Ele gentilmente pediu licença a elas e foi em direção a Rute, que corou ao mesmo tempo em que seu coração parecia querer explodir, tão acelerado estava. Ele a acompanhou até sua casa e no momento em que Rute estendeu a mão para ele, despedindo-se, Arthur aproximou seu rosto ao dela e deu-lhe um leve beijo nos lábios, saindo correndo em seguida, sorrindo e acenando para ela. Rute, parada à porta de casa sorria-lhe e acenava de volta, feliz como nunca se sentira em toda a vida.
        Na tarde seguinte voltaram a se encontrar na escola e, na porta da casa de Rute, olhando-a nos olhos e segurando-a pelos ombros, perguntou-lhe se ela queria namorar com ele. Arthur nem esperou a resposta dela. Puxou-a para si e a beijou, não o beijo da véspera, mas um beijo longo e carinhoso. O primeiro beijo de Rute, correspondido com amor.
       − Eu gostaria de conhecer a sua família e pedir a ela para namorarmos. − disse Arthur logo após o beijo.
      Rute sentia-se totalmente apaixonada por Arthur. Tinha vontade de, naquele instante, fugir com ele para qualquer parte do mundo para viverem esse amor. Demorou um pouco a responder, tanta era a sua felicidade, o que levou Arthur a dizer-lhe:
      − Isso se você quiser namorar comigo, é claro! − E ao dizer isso, sua expressão era de apreensão.
        − É claro que quero... é o que eu mais quero neste mundo...
        Arthur sorriu aliviado e perguntou-lhe:
        − E quando eu posso fazer esse pedido?
       Meu pai é falecido e minha família é minha mãe e minha irmã mais nova.
       − Você acha que sua mãe vai aceitar que você namore? Você já teve namorado?
       − Nunca... você vai ser o meu primeiro e único namorado.
       Em seguida, tomando coragem, disse a Arthur:
     − Este foi o meu primeiro beijo... eu nunca havia beijado antes.
     Arthur escancarou um sorriso e falou:
     − Espero que o segundo seja melhor que o primeiro.
E beijou-a.
Antes de partir, Rute disse a Arthur que iria conversar com a mãe e marcaria um dia para que ele fosse pedi-la em namoro formalmente. Outro beijo, carícias no rosto, acenos.
No sábado seguinte, Arthur foi convidado a jantar na casa de Rute, com seus pais. O jovem, muito nervoso, após o jantar fez o pedido oficial à mãe de Rute, que aceitou. Ambas as famílias estavam satisfeitas com as escolhas de seus filhos. A mãe de Rute abriu uma champanhe para brindarem à felicidade do jovem casal.


       Rute estava tão feliz com Arthur que desejava estar com ele a todo instante, onde quer que ele estivesse. E se não podia estar junto a ele, angustiava-se e lhe telefonava para saber como ele estava, declarando seu amor repetidas vezes.
Durante as férias, não esteve com Arthur tanto quanto desejava, pois ele passou parte dela se preparando para o exame vestibular. Mas assim que o exame estava concluído e ele aprovado, passaram a sair quase todo dia. Andavam sempre de mãos dadas, assistiram todos os filmes que quiseram ver no cinema, e pela primeira vez em suas vidas foram a um restaurante sem a presença de seus pais, o que os fez sentirem-se adultos.
Raquel, embora dois anos mais jovem que a irmã, era mais madura e foi a primeira a perceber que algo poderia dar errado na relação de Rute e Arthur.
− Rute, você não acha que está sendo muito controladora em relação ao Arthur?
Sem compreender o que a irmã dizia, Rute perguntou-lhe:
− O que você quer dizer com controladora, Raquel? Nós estamos muito felizes.
− Mas você não acha que está tirando um pouco o espaço do seu namorado? O tempo todo você está com ele. Até tem ido todos os dias encontrá-lo na saída da faculdade. E quando não está com ele, fica horas ao telefone. Não lhe deixa tempo nem para respirar.
Rute ficou séria e aborrecida com a irmã.
− Eu estou achando que você está com inveja!
Raquel retomou sua leitura, mas no momento em que Rute estava saindo da sala, disse-lhe:
− Não sinto inveja de você, minha irmã, só quero a tua felicidade e acho que você está indo por um caminho que destrói os relacionamentos. Ame-o, mas deixe-o respirar, ser ele mesmo e não um outro você. Não o sufoque, como está fazendo.
Rute, irritada, respondeu:
− E o que você entende de amor? Nunca se apaixonou na vida. Quando acontecer, poderemos conversar de igual para igual.
E saiu da sala.

        Não muito tempo depois, Arthur passou a agir de forma diferente com Rute. Não parecia ter a mesma alegria que tinha antes. Já não saíam tanto juntos, sempre havendo uma desculpa relacionada à faculdade, que o impedia de encontrá-la, de saírem juntos. Inúmeras vezes ele não atendeu ao telefone. Em um momento, ele não estava em casa; em outro, já estava dormindo.
      Rute não entendia a atitude de Arthur. Fazia de tudo para agradá-lo e, quando estavam juntos, sempre lhe dizia do seu amor, e expressava esse amor acariciando-lhe a face, abraçando-o, beijando-o todo o tempo que estavam juntos. Afastou-se até de suas poucas amigas para se dedicar totalmente a ele. Arrumava-se para Arthur e caso ele não percebesse, ela lhe chamava a atenção para o que vestira para ele. Até o curso Normal ela parara, para não perder seu tempo em outra coisa que não o seu amor. Chegava a ficar horas na porta da faculdade para que ele, ao sair, pudesse estar com ela. O que estava fazendo de errado? Só o amava e expressava intensamente o seu amor. E Raquel, que a tinha irritado tanto com aquela história dela ser controladora, de sufocar o Arthur, de não o deixar respirar. Ela o amava e queria ser o seu ar, como ele era o dela.
      Arthur evitou encontrar-se com Rute de todas as maneiras possíveis, até saindo da faculdade por uma porta lateral e não atendendo seus telefonemas ou quando ela o vinha procurar em casa. Dera ordens aos empregados para sempre dizer que não estava ou, se fosse tarde, que estava dormindo.
          A mãe de Arthur, percebendo a atitude do filho em relação a Rute, disse-lhe certo dia:
       − Quando você começou a namorar com a Rute, teve um atitude que me deixou muito orgulhosa: levou-nos a jantar na casa dela e a pediu em namoro perante as nossas famílias. Por favor, filho, não a maltrate nem a despreze assim como você está fazendo, pois isso dói mais do que o término desse namoro. Se você não a ama mais, tenha a mesma atitude de homem que você teve para iniciar o namoro e ponha um ponto final. É o mínimo que eu posso esperar de você.
        Naquela mesma semana, Arthur terminou o namoro com Rute.
     Ela ficou desesperada, sem entender o porque da atitude de Arthur. Ela o amava tanto, tão intensamente, só vivia para ele e, no entanto, ele acabara o namoro e, segundo suas palavras, sem possibilidade de volta. Ele havia usado a mesma palavra que Raquel usara: sufoco. Ele se sentia sufocado por ela. Como poderia estar sufocado se ela só lhe dava amor? Ela havia se iludido, pensando que Arthur a amava, mas ele nunca teve o amor que ela lhe dedicava.
       Rute ficou tão desencantada com o término de seu namoro que chegou a ficar doente. Porém, aos poucos foi-se recuperando e o tempo foi o melhor remédio para a sua desilusão. Nunca mais namorou e foi envelhecendo sem perceber. Enterrou a mãe e vivia a maior parte do tempo em casa, saindo apenas quando era necessário.
       E, na semana passada, Raquel chegara com a notícia de que encontrara Arthur por acaso e que ele desejava visitá-la. Tudo o que estava adormecido a anos, acordou no coração de Rute. Sentiu o amor por ele com intensidade, talvez até maior, por estar acumulado a tantos anos. E desde que recebera a notícia pela irmã, sonhava com esse reencontro. Imaginava Arthur chegando, tomando-a nos braços, beijando-a, pedindo perdão por a ter abandonado no passado, jurando-lhe amor eterno. E ela... ah, ela passaria os seus últimos anos ao lado do seu amado, vivendo para ele, todos os instantes de sua vida. Tudo fariam juntos. Quem sabe, viajar por todo o mundo em uma eterna lua-de-mel, nada havendo que os separasse.
        Tais pensamentos foram tão fortes, que Rute sentiu falta de ar. Foi até a janela e abriu-a para respirar o ar fresco do final da tarde. Olhando para fora, a natureza pareceu-lhe linda como nunca antes. Rute observou, então, uma linda borboleta azul – um tom de azul brilhante e forte – que voava junto às flores do jardim. Rute permaneceu parada e quando a borboleta pouso em um galho próximo à janela, disse a Raquel:
      − Veja, Raquel, que borboleta linda! Acho que é a mais linda que já vi!
      Raquel levantou-se e aproximou-se lentamente da janela para observar a borboleta.
        − Sim, minha irmã, é realmente linda!
     − Vou pegá-la! − disse Rute. Vou fazer com ela um quadro como eu fazia antigamente, lembra? Posso dar de presente a Arthur, para marcar o nosso reencontro.
        − Devagar para não assustá-la!  
No entanto, Rute, ansiosa por pegar a borboleta o fez com tal ímpeto que a borboleta voou antes que ela pudesse alcançá-la.
Um gesto, este simples gesto afoito de querer pegar a borboleta, fez com que Rute se conscientizasse do que ela fizera com Arthur no passado. De fato, ela o havia assustado, por isso ele a deixara. Uma sensação de culpa e amargor a dominou. Enquanto ela a via a borboleta afastar-se, fechou os olhos e só conseguiu dizer:
− Arthur!

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