O SONHO




O homem acordou mais uma vez de madrugada, após o mesmo sonho que o acompanhava há anos, tão intenso e realista que muitas vezes imaginou poder haver duas dimensões, duas vidas que se entrecruzam nos seus sonhos. Se assim fosse, qual das duas vidas seria a real? Ou ambas seriam reais? Ou sonhos, uma da outra?
No sonho, ele havia matado alguém – que nunca sabia quem era – e enterrado em seu quintal. Tornara-se um segredo, o qual verdadeiramente ninguém sabia. Nessa outra vida, levava, apesar do segredo, uma vida normal aos olhos dos outros, que nem sequer podiam imaginar o que ele havia feito e o que havia enterrado nos fundos de sua casa.
Nunca acordava como de um pesadelo; simplesmente acordava, com a estranha sensação de viver uma outra realidade que não aquela que constituía esta sua vida. O sentimento era tão realista, que permanecia deitado no escuro, olhos voltados para o teto, porém mirando o infinito, pensando em tantos casos de desaparecimentos, que talvez tivessem a explicação em crimes como o que ele, no sonho, cometera.
Além da possibilidade de existirem vidas vividas em dimensões diferentes, ocorrera-lhe a da existência de reencarnação, sendo aquele sonho reincidente a lembrança de uma vida passada. Caindo-lhe em mãos, eventualmente, algum texto de Psicologia, pegava-se pensando que talvez ele houvesse de fato cometido um crime, adormecido em seu inconsciente, como mecanismo de fuga.
Apesar desse sonho o acompanhar a anos e voltar de tempos em tempos, isso não o impedia de viver tranqüilamente esta sua vida. Às vezes pegava-se pensando naquele crime sonhado e a estranha sensação de realidade habitava-lhe a mente. Sim, era isso o que mais o incomodava: não a lembrança do sonho, mas o profundo sentimento de realidade que o acompanhava.
Após tantos anos, uma outra idéia passou a habitar sua reflexões sobre esse sonho. Poderia ser ele um desejo adormecido em si, de matar alguém e não ser descoberto? Quantas pessoas eram presas após vários assassinatos e confessavam o estranho prazer que sentiam em matar alguém, sentindo-se de alguma forma poderosas por terem outras vidas em suas mãos? Mas ele não sentia prazer algum nessa idéia. Então o porque desse sonho? Ao mesmo tempo em que o desejo de compreender o sonho o levara diversas vezes a pensar em procurar algum psicólogo que o ajudasse, o medo do que poderia vir à tona com uma terapia o fazia desistir disso.
Em uma noite chuvosa – havia chovido torrencialmente durante todo o dia –, ao passar pela rua paralela abaixo da que morava, viu uma movimentação de pessoas, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil e policiais em frente à casa de seu vizinho de fundos. Passou vagarosamente e seguiu até sua casa, pensando em guardar e carro e, em seguida, voltar para ver do que se tratava. Ao entrar na sua rua, havia um movimento semelhante, porém menos intenso, que, ao aproximar-se mais, percebeu ser em frente à sua casa. Parando o carro no meio da rua e aproximando-se de um policial, identificou-se como o proprietário da casa, querendo saber o que havia acontecido. O policial encaminhou-o para outros policiais, que o informaram do desabamento do muro divisório entre sua casa e a o vizinho dos fundos, com deslizamento de terra. Angustiado perguntou:
− Alguém ficou ferido ou morreu?
Os homens entreolharam-se e um deles lhe disse:
− Sim, alguém morreu... mas não hoje.
Sem compreender o que o policial lhe falara, perguntou:
− Como assim, “hoje não”?
O mesmo policial lhe informou:
− Com o deslizamento de terra, surgiu um esqueleto, que estava enterrado em seu quintal. O senhor sabe informar de quem se trata?
Na mesma hora, a cabeça do homem começou a girar e o seu sonho recorrente veio-lhe à mente. Então talvez não fosse um sonho... talvez fosse realidade... foi realidade... será que eu matei alguém e não me lembro disso?
O policial voltou a perguntar-lhe:
− O senhor sabe alguma coisa sobre esse esqueleto?
Atordoado, o homem quase desmaiou, sendo amparado pelos policiais.
− É melhor o senhor nos acompanhar até a delegacia.

Na delegacia, o homem chega visivelmente perturbado e um jovem delegado dirige o depoimento, pois vê no caso a possibilidade de um destaque através da imprensa que pode ajudar em sua carreira.
− O senhor sabe dizer de quem é a ossada encontrada em seu quintal?
− Nem imagino...
O delegado olha com firmeza para os olhos do homem, tentando perceber algo que demonstre que mente, para prosseguir com as perguntas.
− Há quanto tempo o senhor mora naquela casa?
− Desde que nasci. Foi meu pai quem a construiu assim que se casou com minha mãe.
− E onde ele vive atualmente?
− Meu pai faleceu a alguns anos.
− E sua mãe?
− Vive em um asilo, por vontade própria.
− Há quanto tempo o senhor mora sozinho?
− Há cerca de oito anos.
− Aquele local onde a ossada foi encontrada sempre foi cimentado?
− Sim, desde que eu me lembre.
− Sabe se foi feita alguma obra nele, recentemente?
− Não. Desde que eu me lembre, o piso do quintal sempre foi em ardósia. Eu nunca precisei fazer obra nele.
− Ficou ausente de sua casa por vários dias, desde que mora sozinho?
− Nunca. Eu não gosto de sair nem de viajar. Prefiro ficar sozinho em casa.
− Tem alguma idéia de como aquele esqueleto foi parar em seu quintal?
− Não tenho a menor idéia, embora... − e o homem parou, recordando de seus sonhos.
− Embora...? − disse o delegado, gesticulando para que o homem continuasse.
− Não... nada concreto... apenas um sonho que tenho a anos... a muitos anos... o mesmo sonho...
− E pode contar esse sonho?
O homem ficou em silêncio algum tempo. Finalmente suspirou e procurou ser objetivo no que dizia.
− Há anos eu tenho um mesmo sonho. Nele eu matei alguém, com uma pancada na cabeça, enterrei em meu quintal e ninguém tem conhecimento do que fiz. É como se no sonho eu vivesse uma outra vida, eu não essa minha.
− Esse sonho começou depois que o senhor passou a morar sozinho?
− Não, eu sempre o tive...
− Sabia que no crânio daquele esqueleto havia um afundamento na parte posterior?
O homem ficou a olhar para o infinito, surpreso com essa informação, não conseguindo mais falar, quase em estado de choque, com seus pensamentos deixando-o tonto.
Nada mais tendo a perguntar, o delegado dispensou o homem, informando-o que talvez seja necessário novo depoimento, conforme as investigações prosseguirem. Depois que o homem saiu, o delegado comentou com um policial.
− Esse sujeito não me convenceu! Mora sozinho, colocou a mãe em um asilo, não gosta de sair nem de viajar, e nem é velho... ainda não tem quarenta anos. E ainda me vem com essa história de sonhos. Não terei nenhuma surpresa se descobrirmos que ele matou alguém e enterrou em seu quintal. Mande cavar o quintal todo. Pode haver mais ossadas. O sujeito pode ser um psicopata.

O homem pode dormir em sua casa, mas a área do quintal ficou interditada. No dia seguinte começaram as escavações, mas nada foi encontrado. Semanas depois, chega um laudo do Instituto Médico Legal informando que aquela ossada está enterrada ali entre trinta e cinco e quarenta anos.
O delegado, ao tomar conhecimento dessa datação, ficou frustrado, pois com tal informação, o seu suspeito nunca poderia ser o responsável por um suposto crime, ficando, assim, praticamente impossível descobrir o que aconteceu e a identidade do morto. Apesar disso, algo incomodava o delegado, em relação ao depoimento do homem: o sonho. Era muito coincidência no sonho o homem matar alguém com uma pancada na parte posterior da cabeça e o crânio do morto apresentar esse mesmo sinal.
“Nesse mato tem coelho”, concluiu o delegado, falando consigo mesmo.

A notícia do desabamento de terra que resultou no encontro da ossada não recebeu grande destaque da imprensa. No entanto, quando saiu o resultado da datação aproximada da morte da pessoa, a imprensa começou a interessar-se e o fato da pessoa ter sido assassinada, sem saber-se quem é, fez com que este caso, entre milhares de outros crimes, foi um dos escolhidos pelos noticiários para chamar a atenção do público. O homem, mesmo sendo impossível pela sua idade ser o autor de um possível crime, continuou a ser alvo de comentários, e jornalistas a todo instante iam procurá-lo, pedindo informações que ele não tinha para dar. O que ele via em seus reiterados sonhos agora estava virando um pesadelo, porém na vida real.
Em certa noite, o homem recebeu um telefone do asilo em que sua mãe vivia e um funcionário pedia a ele que a fosse ver no próximo sábado, a pedido dela.
No sábado, o homem dormiu até mais tarde, pois não conseguira dormir bem a noite com o que estava acontecendo. Chegou ao asilo quando já passava das onde horas da manhã e foi encaminhado ao jardim, onde sua mãe estava. Após os cumprimentos, beijos e abraços usuais, a mãe disse ao filho:
− Eu por acaso, outro dia, vi no telejornal uma notícia sobre um cadáver encontrado no quintal lá de casa. E ouvi que de alguma forma você está sendo considerado suspeito ou que está escondendo algo. Por isso te chamei aqui. Como você está, meu filho?
− Ah, mãe, estou péssimo! Minha vida virou de cabeça para baixo e nem estou conseguindo mais dormir direito nem trabalhar. Meu patrão está me pedindo para tirar férias até que todo esse assunto esteja resolvido.
− E aquele seu sonho... aquele que você tinha desde adolescente? Continua?
− Desde que tudo isso aconteceu eu não tenho mais tido aquele sonho... mas ele voltava de tempos em tempos, não era todo dia. Na verdade, eu mal tenho conseguido dormir ultimamente. Só consigo adormecer quando está para amanhecer o dia.
− Eu percebi que você não está bem. Esta mais magro, com a aparência cansada, com olheiras.
− Minha vida está um inferno, mãe... não me deixam em paz... e eu nem sei nada daquele corpo... daquela “coisa” enterrada no nosso quintal.
A mulher segurou a mão do filho e a acariciou, colocando-a em seguida junto a seu rosto.
− Filho, eu preciso conversar com você sobre algo que eu e seu pai combinamos nunca revelar a ninguém, nem mesmo a você.
O homem olhou apreensivo para sua mãe, mas nada disse.
− Quando você me contou sobre o seu sonho, eu fiquei tentada a te contar, mas me mantive fiel ao compromisso com teu pai, mas agora creio que chegou a hora de você saber, para entender o que está acontecendo. O que você fizer com o que eu vou te contar, vou te apoiar.
− Isso deve ter a ver com o que acharam em nosso quintal, não é?
A mulher não respondeu a esta pergunta do filho. Simplesmente começou a contar a sua história.


Para começar, o nome de teu pai é outro, não o que você conhece. Ele precisou assumir uma nova identidade para não ser morto, durante o período da Ditadura Militar. Ele era um professor que se juntou a um grupo armado, lutando pela volta da democracia em nosso país. Teu pai sempre foi um idealista e acreditou que aquela era a única forma de luta que daria um resultado positivo. Na época, os que lutavam contra o governo eram chamados de guerrilheiros. Muitos dos seus amigos foram mortos no confronto com os militares ou, presos, foram torturados até a morte. Teu pai, em uma ocasião em que a casa onde estavam escondidos foi cercada pela polícia, conseguiu escapar, mas levou um tiro. Seus companheiros foram todos assassinados. Nessa época, eu morava com meus pais em uma casa próxima àquele esconderijo. Teu pai caiu em nosso quintal, desmaiado. Tua avó chamou teu avô e rapidamente o colocaram dentro de nossa casa, antes que os policiais descobrissem.
Meu pai era contra os militares no poder, mas não acreditava na luta armada, mas sim em uma conscientização da população para que pudesse obrigar os militares a voltarem ao quartel. Meus pais me mandaram limpar o sangue no quintal, antes que os policiais pudessem vasculhar as casas, o que de fato eles fizeram em seguida, em todas as casas do nosso quarteirão. Quando os policiais entraram em casa, minha mãe fingiu que estava fazendo o café-da-manhã e ao me verem lavando o quintal, eu lhes disse que estava limpando a sujeira do nosso cachorro. Teu pai ficou escondido em um vão debaixo da escada, que ficava escondido pelo sofá. Após os policiais olharem em todos os cômodos e nada encontrando, saíram e então nós pudemos cuidar do teu pai. Ele tinha sido atingido no abdome, mas felizmente não perfurou nenhum órgão vital. Minha mãe, embora não trabalhasse fora, tinha feito um curso de enfermagem e cuidou do ferimento, mas sem extrair a bala. Teu pai ficou com essa bala o resto da vida, pois tinha medo que descobrissem como ele a tinha conseguido.
Procuramos levar a nossa vida normalmente, meu pai trabalhando, eu indo para o Curso Normal e mamãe continuando com os afazeres da casa e participando do grupo da igreja. Qualquer alteração na nossa rotina poderia chamar a atenção. À noite, em casa, eu tocava piano todas as noites, como era comum fazer e, às vezes, papai e mamãe cantavam, mesmo que não estivessem com ânimo para fazê-lo, mas tudo tinha que manter o que fazíamos diariamente.
Quando teu pai melhorou, não tinha mais febre – o que o fazia delirar –, começou a descer do meu quarto, onde ele estava dormindo e a fazer refeição conosco e a conversar. Meu pai e ele, embora tivessem pensamentos diferentes quanto à forma de combater a Ditadura, tornaram-se grandes amigos e se respeitavam. Aos poucos, teu pai foi concordando com as reflexões do meu pai. Mas ele um dia me disse que uma das razões que o estava motivando a largar a luta armada era eu. Ele me disse que estava gostando de mim e que sacrificaria os seus ideais para ficar comigo e me fazer feliz. Eu também estava gostando dele e tinha medo que ele voltasse para a guerrilha e morresse.
Meus pais passaram a ter por ele um amor de pais para com um filho e também receavam que ele pudesse ser morto pelo militares, caso voltasse à sua antiga vida. Aos olhos deles, o nosso amor poderia ser a salvação do teu pai. Quando, finalmente, ele decidiu-se a abandonar tudo para ficar comigo, meu pai conseguiu, através de alguns amigos que estavam criando falsos documentos de identidade para alguns perseguidos políticos saírem do país em segurança, uma nova identidade para o teu pai. Na época da guerrilha, ele usava cabelos e barba compridos – lembra-se como a barba dele era farta e espessa, e mesmo com ela feita, deixava o rosto dele marcado com ela? –. Eu então cortei os cabelos dele e o deixei curto, o que na época era fora de moda, usado mais por homens maduros. Tingi o cabelo dele de castanho e ajudei-o a tirar a barba. Surgiu então um rosto lindo, que nem lembrava aquele homem de aparência tão viril e, até certo ponto, grosseira. Sem a barba e com os cabelos curtos, mais parecia um jovenzinho de 18 anos. Quem o visse, usando as roupas fora de moda, dizia que era um rapazinho tranqüilo, longe da imagem de um rebelde. Espalhamos a história do filho de um amigo de infância de papai que viria passar uns tempos conosco até conseguir emprego, pois estava difícil consegui-lo no interior e, após alguns dias teu pai começou a entrar e sair de nossa casa, sem que os vizinhos percebessem nada. Aos que disseram que nem o tinham visto chegar, dissemos que havia chegado ao amanhecer, no final da madrugada.
Papai conseguiu um emprego para ele e em poucos meses resolvemos nos casar. Meus pais deram de presente de casamento a nós o terreno onde construímos a nossa casa, essa em que você mora. Antes do casamento, erguemos apenas um quarto, o banheiro, a sala e a cozinha. O restante, fomos fazendo aos poucos. Quando eu fiquei grávida de você, a casa já estava pronta, com os dois andares e a lavanderia abaixo da cozinha, sobrando o espaço do quintal, que era inclinado. Pensando em você, decidimos fazer uma piscina no quintal. Construímos um muro de contenção e uma empresa iniciou a escavação, nivelando o terreno à medida eu a terra era tirada. Foi então que aconteceu algo que mudou as nossas vidas.
Eu estava no oitavo mês da tua gestação que teu pai chegou uma noite em casa junto com um homem que eu nunca havia visto antes e de rosto perverso. Teu pai demonstrava estar muito nervoso. Eu sabia que aquele homem não era boa coisa e corri a abraçar teu pai. Aquele homem, com um sorriso perverso, disse: “Que coisa linda o maridinho com a esposa grávida! Uma família perfeita!”. Continuando a sorrir com maliciosa maldade, acrescentou: “Pena que não vai durar muito...”. Nessa hora, com um medo como nunca antes eu tivera na vida, agarrei-me a teu pai. Sem tirar o sorriso malicioso do rosto, aquele homem asqueroso obrigou-nos a subir para o nosso quarto.
No quarto ele disse, olhando para mim: “Mas que indelicadeza do seu marido que nem nos apresentou. Ele é um velho conhecido meu, com ficha na polícia. Eu já quase o prendi por duas vezes, mas o infeliz conseguiu escapar. Mas hoje ele não me escapa. Nem sem a barba e com esse cabelo e essa roupa boko-moko ele conseguiu me enganar. Assim que eu o vi hoje, eu o reconheci. Hoje eu acabo com ele!”, terminou ele, deixando de sorrir e falando a última frase com ódio nas expressões e nos olhos. Desde que ele entrara em casa, mantinha uma das mãos no bolso da calça. Quando a tirou, vi que estava armado. Apontando a arma para a minha cabeça, disse-me: “Agora, belezinha, tira o cadarço dos sapatos do seu amorzinho aí”. Fiz o que ele mandou. “Agora, amarra com um deles os pés do seu maridinho”. Tentei não apertar muito, mas ele me abrigou a apertar o máximo que eu podia. E virando-se para o teu pai, disse-lhe: “Agora senta direitinho nessa cadeira e coloca as mãos para trás”. E olhando para mim, ordenou: “Amarra as mãos... bem amarradinhas... e pega esparadrapo”. Obedeci, fui ao banheiro e trouxe o esparadrapo. Ele cortou vários pedaços e com eles tapou a boca de teu pai e a minha. Em seguida, disse ao teu pai algo que me deixou apavorada: “Antes de você morrer, vai ver o que eu vou fazer com a tua mulherzinha linda e grávida”. Teu pai tentou falar algo e se livrar dos cadarços, mas não conseguia. Aquele sujeito nojento rasgou as minhas roupas e me jogou nua sobre a cama. Eu tentava gritar e lutar contra ele, mas ele era mais forte do que eu. Eu podia ouvir teu pai tentando gritar, esforçando-se para livrar-se e me ajudar. Então aquele animal abriu minhas pernas e jogou-se contra mim, me penetrando e beijando-me o pescoço. Eu gritava e tentava me libertar, mas ele ria e dizia: “Isso, mexe bastante que fica mais gostoso...”. E gritou para o teu pai: “Tá gostando de ver tua mulherzinha se mexendo debaixo de mim, seu corno?!” Teu pai, então, conseguiu libertar as mãos e, com os pés ainda amarrados, pegou o primeiro objeto pesado que viu à sua frente, um abajur com base de metal, que estava sobre a cômoda e atingiu com toda força a cabeça daquele monstro, que na mesma hora parou de movimentar-se. Eu o joguei para o lado e levantei-me, para ajudar teu pai a tirar o cadarço dos pés. Arrancamos os esparadrapos de nossas bocas e nos abraçamos, ele não parando de perguntar-me se eu estava bem, se você estava bem.
Chorando, eu disse a teu pai para chamar a polícia, mas ele disse que não podia fazer isso. Aquele homem era da polícia e, no passado, na época da guerrilha, ele, teu pai, havia matado dois policiais num confronto armado. Se chamassem a polícia, ela descobriria quem ele é e poderia chegar ao meu pai através dos documentos falsificados. Ele seria morto certamente e o que poderia acontecer com meu pai? Perguntei a teu pai o que faríamos com aquele homem que tinha o crânio afundado, sagrando em nossa cama, mas ainda respirando. “Temos que sumir com ele”, foi o que teu pai respondeu-me. De repente, um olhou para o outro e foi como se houvesse transmissão de pensamentos entre nós. Verificamos os bolsos e encontramos os documentos daquele sujeito. Depois o carregamos escadas abaixo, até o quintal, e o jogamos dentro do buraco aberto destinado à piscina. Em um balde metálico, queimamos os documentos para ele nunca fosse identificado e jogamos as cinzas sobre o homem e o cobrimos de terra.
Na manhã seguinte, sem conseguirmos dormir, quando os pedreiros chegaram, teu pai os despachou dizendo que ele e eu havíamos discutido e desistimos de construir a piscina, achando melhor cimentar tudo e fazer um pátio para o nosso bebê, que estava para nascer, brincar. Depois foi à empresa e acertou os detalhes do cancelamento da piscina e o pagamento das despesas tidas, inclusive com o piso que seria feito.
Nos meses seguintes vivemos um verdadeiro inferno, pois a cada dia temíamos que o que aconteceu fosse descoberto. Sempre que a campainha soava, nossos corações aceleravam. Com o passar dos anos, fomos ficando mais tranqüilos, porém nunca totalmente.
Por ironia do destino, teu pai morreu de infarto no dia 
15 de março de 1985, quando os militares deixaram o governo e o Tancredo Neves iria assumir a Presidência da República, o que não aconteceu, devido à sua doença que o levou à morte, como você bem sabe. Ele não sobreviveu para ver a democracia restaurada. Eu mantive em silêncio todos esses anos a história de teu pai e o que aconteceu conosco naquela noite maldita. Quando você começou a ter esses sonhos, eu pensei em te contar, meu filho, mas você era tão jovem e fiquei com medo que você pudesse se rebelar, pois você estava na idade da rebeldia. E eu não queria te perder. E isso é tudo, meu filho. Agora você já conhece toda a história que teu inconsciente te recordava em sonho, como um estigma do que você testemunhou quando ainda estava em meu ventre. Estou velha, cansada e não tenho mais o que temer. Deixo a você a decisão que tiver de tomar.


O homem, após despedir-se carinhosamente de sua mãe, voltou para casa e dirigiu-se ao quintal. Havia uma longa faixa plástica isolando o quintal. Ele arrancou tudo e jogou na lixeira. Olhando para o local onde por anos jazera o corpo daquele policial que violentara sua mãe e planejara matar o seu pai, o homem cuspiu e decidiu-se, falando a si mesmo: “Esta história morrerá com minha mãe e comigo. Ninguém nunca a conhecerá. Ninguém jamais saberá quem você foi e não terá o consolo de ter alguém que chore por você”.
Entrou, tomou um banho e deitou-se. Dormiu serenamente, como a muitos anos não o fazia.

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