Afonso bateu a
porta atrás de si, encerrando a rotineira briga com a esposa. O casamento
estava insustentável, mas ele não conseguia se separar. Algo muito forte na sua
educação católica gritava dentro de si, apesar da insatisfação que sentia com
seu casamento, que teria de continuar casado até que a morte o separasse da
esposa, seja pela sua, seja pela dele.
Sentia-se
profundamente carente, não apenas de sexo, que Anita recusava a meses apesar
das tentativas de Afonso, mas principalmente de atenção e carinho, do
companheirismo que ele acreditava fazer parte do casamento, como testemunhara
na vida matrimonial de seus pais e também de um de seus tios. Ele nunca
esqueceu quando a esposa de seu tio, após a morte deste, lhe dissera que ela
havia perdido um grande companheiro e não apenas o marido. Aquele ideal de
casamento é o que queria para si.
E, em sua
mente, Afonso acredita que foi a carência que levou-o a sentir-se atraído por
uma desconhecida. Todas as vezes, futuramente, quando se sentiu carente,
rememorou aquele episódio de sua vida, que nunca conseguiu esquecer.
Afonso era
extremamente tímido e inseguro, e devido a isso, só aos vinte e quatro anos
teve a primeira experiência sexual, ao contrário de seus colegas que contavam
suas experiências, alguns desde a adolescência. Essa sua situação o angustiava
profundamente, porém não conseguia se aproximar de nenhuma garota, pois na hora
ficava tão vermelho, tão nervoso e trêmulo, o coração tão acelerado, que não
conseguia sequer falar. Foi uma mulher mais velha e experiente quem conseguiu
seduzi-lo, atraída que fora pelo rapazinho tímido e esquivo. Apesar do
nervosismo inicial e de dúvidas quanto a como fazer, com o carinho e a orientação
da mulher, ele finalmente consumou o ato, sentindo-se homem como nunca se
sentira antes. Aquela sua experiência fora ótima, gostosa, na verdade
deliciosa, linda, e com ela morreu a sua angustiada dúvida: será que morreria
virgem? Morte para essa dúvida e
aposentadoria compulsória por tempo de serviço às suas revistas pornográficas.
Esta relação
não durou além de poucos meses, mas o suficiente para que adquirisse
experiência e segurança. Aquela mulher mais velha ensinou-lhe muitas coisas
sobre a vida, em todos os seus aspectos. E foi ela quem o apresentou a Susana,
mulher jovem como Afonso, porém experiente, decidida, de personalidade forte e
objetivos concretos na vida. Em pouco tempo, Afonso estava completamente
envolvido por Susana e de tal forma que abdicou a todos os seus sonhos e planos
para assumir os dela.
Em menos de um
ano já estavam casados.
Poucos anos
após o casamento, Afonso percebeu que havia errado ao anular-se, ao não revelar
os seus gostos, vontades, opiniões e planos para o futuro, e este erro culminou
em atritos e deterioração de seu casamento.
A sinceridade
com que Susana se expressava e que o atraíra tanto, pois admirava aquilo que
ele mesmo não conseguia fazer devido à sua insegurança, com o tempo tornou-se
algo negativo. Afonso passou a julgar Susana uma pessoa incompreensível, devido
ao impulso que ela tinha de dizer tudo o que pensava. O objetivo maior da vida
dela era o trabalho; e ele foi arrastado desde o início por essa laboriosidade
que minava seu tempo e suas energias. E a sua paixão.
O cinema
sempre fora uma paixão para Afonso. Assistia nos cinemas a todos os filmes que
chamavam a sua atenção. À época da entrega do prêmio Oscar, preparava-se indo
ao cinema com maior intensidade para poder julgar se as premiações eram justas.
No primeiro ano de casado, Afonso cogitou pela primeira vez em anos, desde a
sua juventude, não assistir àquele espetáculo, por haver se distanciado do
cinema desde que começara o seu relacionamento com Susana. Ela não apenas não
fazia questão de ir ao cinema, como nunca tinha tempo para fazê-lo. Este fato
tão simples levou Afonso a analisar seu relacionamento com Susana, chegando à conclusão de o quanto
ele havia se anulado e se privado em seus gostos e em seus momentos pessoais.
Susana
esforçara-se a vida toda para sair da situação de pobreza em que fora criada.
Tinha intenção de ter o seu próprio negócio, casa própria e diversos bens que
lhe proporcionaria uma vida confortável. Trabalhava em uma empresa estatal e,
nas horas de folga, fabricava doces e os vendia tanto onde trabalhava como em
algumas doceiras da cidade. Afonso a ajudava em tudo.
Relegar o
cinema a um plano secundário ou terciário, vender o seu carro e passar a andar
de ônibus, parar de comprar roupas e perder o prazer de vestir-se bem, pois não
tinha mais vida social, abandonar suas meditações – eis apenas alguns aspectos
de sua vida que lhe vieram à cabeça.
Em seu diário,
que guardava com todo o zelo, mesmo de Susana, registrou alguns pensamentos
dessa época.
“Isto não significa que desejo abandoná-la;
ao contrário, creio que a seu lado poderei construir muitas coisas boas, mas
necessito de mais independência e apoio de sua parte para não anular-me como
indivíduo. O prazer do cinema, pretendo retomá-lo; o carro, posso, no futuro,
adquirir outro. Roupas, ao menos uma peça por mês preciso comprar. À meditação,
entregar-me-ei com mais afinco.
“Não estou arrependido quanto ao meu
casamento com Susana, mas julgo necessário modificá-lo um pouco para
preservarmos a individualidade de cada um”.
Desnorteado.
Assim Afonso sentia-se certa manhã quando se dirigia para o trabalho. Na noite
anterior, ele havia tido uma grande discussão com Susana, uma entre tantas que
estavam presentes em suas vidas diárias. Dessa vez, muita coisa fora dita e uma
decisão precisava ser tomada sobre o casamento deles. Nessa manhã, a briga
havia continuado.
Individualidade.
Foi esse direito que Susana negara a Afonso. Do ponto de vista dela, duas
pessoas que se amam têm sempre de estar juntas e serem uma só. Além do mais, completou,
ele a havia conhecido do jeito que ela era, não mudaria em nada e caberia a ela
decidir se o casamento prosseguiria ou não. Afonso ficou sem norte, com
inúmeras dúvidas, tanta carência, que não soube o que dizer. Chegou a
questionar-se – ruim com ela, pior sem?
Ao bater a
porta atrás de si, pensou que, apesar da sua angústia e irritação que a
convivência com Susana proporcionava, continuaria ao lado dela até a completa
intolerância fazer-se presente.
Afonso sentia
a necessidade de um alento que o impulsionasse rumo a um futuro livre,
motivador e feliz. E esse alento surgiu naquela manhã quando, já dentro do
ônibus, dirigia-se ao trabalho, este também um elemento ausente de perspectivas
de realização, uma decepção a afundá-lo num poço de angústias.
O ônibus
rodava lentamente e Afonso, olhando pela janela, pensava em muitos fatos e em
nada, como acontece comumente quando não estamos cientes de nosso raciocínio.
De repente, sua atenção foi despertada pela presença de uma pessoa que
sentou-se no banco imediatamente à sua frente. Uma jovem. Ele não podia ver o
seu rosto, apenas os seus cabelos negros, brilhantes, bem cortado e bem
tratado. Assim como ele, a jovem começou a olhar para a paisagem cinzenta
composta por uma quantidade infinita de edificações. A jovem, ao virar
levemente o rosto para olhar a paisagem, permitiu que Afonso notasse alguns
detalhes de sua fisionomia.
Durante todo o
percurso que juntos fizeram, os olhos de Afonso miraram insistentemente a nuca
da jovem, desejando que ela se voltasse para trás para que ele pudesse vê-la
claramente.
Ao
aproximar-se o local em que ele deveria descer, levantou-se e dirigiu-se à
porta do ônibus, dando o sinal de parada. Desceu e postou-se ao lado do ônibus,
esperando que ele seguisse caminho para poder atravessar a rua. Quando o
coletivo começou a andar, Afonso levantou os olhos, procurando o foco de sua
atenção. Ao seu olhar, o da jovem cruzou com o seu e ele, vexadamente, baixou
os olhos na direção da calçada.
A sua quase
doentia timidez o tornara incapaz de sustentar o olhar sempre que era olhado.
Por mais que tentasse firmá-lo, era impossível fazê-lo. A si próprio
recriminava-se: “Está explicado o porque de minha virgindade até os vinte e
quatro anos. Idiota! – disse a si mesmo
– perdeu a oportunidade de sua vida para conquistar alguém! Por que você não
continuou a mirá-la? Afinal, o ônibus já estava andando e ela nada poderia
fazer, mesmo que não gostasse.”
Caminhou em
direção à empresa que trabalhava, esquecendo aquele encontro. Era apenas mais
uma mulher a despertar seu interesse.
Na manhã
seguinte, Afonso estava no ônibus, como sempre olhando distraidamente para
fora, quando entrou a mesma jovem do dia anterior. Novamente, toda a sua
atenção foi desviada para ela e, por estar lotado o veículo, ela manteve-se em
pé, permitindo a Afonso visualizá-la mais nitidamente.
Parecia um
pouco mais baixa que ele, era morena, corpo lindo e sem exageros, marcado pelo
vestido preto e justo que usava. Os seios eram pequenos, mas bem formados, o
vestido levemente decotado destacando-os. Sua boca era fina e o nariz pequeno e
levemente adunco, em perfeita harmonia com todo o conjunto do rosto, fazendo
dela uma mulher bonita e ao mesmo tempo exótica. Seus cabelos negros, que lhe
chamara a atenção no dia anterior, estavam ainda molhados, dando a ela uma
áurea sensual. Aparentava ter cerca de dezoito anos. Afonso não se lembrava de
ter tido alguma vez uma atração tão forte por uma mulher, atração essa que se
confirmaria em um futuro próximo.
Quando a jovem
finalmente conseguiu sentar-se, Afonso sentiu um impulso para sentar-se a seu
lado, ela ficara sozinha no banco. Mas a sua inibição, unida ao receio de que
ela pudesse perceber seu interesse, reteve-o em seu lugar, sem, contudo,
ser-lhe possível desviar o olhar de seus cabelos, que ganhava volume conforme
ia secando.
Aproximando-se
o local de Afonso descer, ele levantou-se, passou a roleta, pois ainda estava
na parte traseira do ônibus, e não teve coragem de olhar para a jovem um
instante sequer. Apesar de nada acontecer entre os dois, o simples fato de
vê-la já tornara sua manhã mais feliz.
No dia
seguinte, Afonso não encontrou a jovem que o encantara. Aguardou, em vão, o
encontro e entristeceu-se por não acontecer. Estaria ela atrasada? Ou talvez
doente? E se tivesse sofrido um acidente, como o saberia? Como poderia
visitá-la se não sabia onde morava, estudava ou trabalhava, nem sequer o seu
nome?
E sua mente
ficou girando em torno da jovem do qual ela nada sabia. O que faria ela de
manhã, quando se encontravam no ônibus? Imaginou que se dirigisse ao emprego,
já que não carregava livros ou cadernos escolares.
Afonso desceu
em seu ponto costumeiro, pensando na jovem, mas afastando a idéia de qualquer
incidente ou acidente. Simplesmente teria se atrasado ou, talvez, saído mais
cedo de casa. Na avenida em que ele pegava a condução todas as manhãs, passavam
diversos ônibus de diversas linhas e que se dirigiam para onde ele trabalhava.
Ele não havia reparado qual a linha de ônibus ela se utilizava e só percebeu o
seu deslize nessa manhã em que não se encontraram. Necessitava urgentemente
sabê-lo para não tomar ônibus errado. Também não havia reparado em qual local,
durante o percurso, ela subia no ônibus.
Afonso entrou
na primeira condução que passou, no dia seguinte, embora fosse a mais
congestionada das linhas, porém a tomou com receio de que outras já tivessem
passado e ele se atrasasse na entrada do serviço. Felizmente – Afonso julgou
ser obra do destino –, ele tomara o ônibus certo e encontrara a jovem mais
adiante, subindo no mesmo ônibus. Marcou tanto a linha quanto o ponto que ela
utilizava.
Sentia-se
feliz por já saber alguns detalhes sobre a rotina da jovem. Entretanto,
continuava sem coragem de abordá-la. Teria, pensava ele, de fazê-la reparar
nele, chamar sua atenção, e a única maneira que encontrou foi através do
vestuário. Para o próximo encontro, resolveu usar o seu melhor paletó e
gravata, pois, já que a maior parte das pessoas naquela linha não se utilizava
desse tipo de roupa no dia-a-dia, um homem bem vestido chamaria a atenção.
Antes de seu
horário normal, Afonso saiu de casa na manhã seguinte e postou-se no ponto à
espera do “nosso” ônibus. Outros, quase vazios, que o levariam a seu destino
mais rápida e confortavelmente, passaram e ele os dispensou. Valia a pena o
sacrifício só para vê-la. E novamente a viu. Mas o seu medo de encará-la
impedia que qualquer aproximação ocorresse. Sentado alguns bancos atrás, olhava
fixamente para a nuca da jovem, suplicando para que ela se virasse e o olhasse,
o visse, o notasse. “Por favor, querida, vire-se! Eu estou aqui!” Foi nesse
momento que ele sentiu que estava apaixonado. Incrivelmente, mas uma verdade.
Apaixonado por alguém a quem não conhecia e que não o conhecia em contrapartida. Ele ,
um homem bem vestido, não lhe chamava a atenção, como pode observar não somente
naquele dia, como em vários outros de planejada elegância. Vestia-se para
alguém que desconhecia sua existência.
Precisava
mudar de tática. Como abordá-la? Claro, através de algo que lhe despertasse a
atenção e a faria dirigir-se a ele. Sim, algo que fizesse com que ela o
procurasse. Assim pensando, comprou uma revista com assuntos esotéricos –
assunto que atraía a atenção de muitas pessoas àqueles dias – e foi lendo pelo
caminho, enquanto aguardava o encontro rotineiro com a jovem desejada.
Em sua mente
doentiamente apaixonada, Afonso a imaginava sentando-se ao seu lado ao vagar um
espaço em seu banco, enquanto ele lia a revista. Num determinado momento, ele
permitiria que a jovem visse o título da publicação que tanto lhe chamava a
atenção e ela, por também gostar da mesma, pediria licença para interrompê-lo e
trocariam idéias sobre os mais variados assuntos paranormais. Ela o convidaria
a ir à sua casa para verem outras publicações do gênero e, aos poucos, se envolveriam
emocionalmente.
Pondo em
prática o seu plano, Afonso conseguiu sentar-se estrategicamente no banco em
frente à porta traseira do ônibus, por onde entraria a jovem amada. Começou a
folhear a revista e a lê-la, a princípio para criar a imagem de leitor para o
caso de haver alguém à espreita que pudesse descobrir a sua intenção; mas ele
não contava com o fato de encontrar artigos tão interessantes a ponto de
esquecer-se de seu projeto e aprofundar-se na leitura, até olhar para fora e
perceber que o seu lugar de descida estava se aproximando. Atravessou a roleta
apressadamente, deu o sinal de parada e desceu, sem perceber se sua amada
estava ou não dentro do coletivo. “Paciência – pensou consigo –, fica para a
próxima!”
Durante dois
dias, Afonso levou consigo a revista que prejudicara seus planos, sem encontrar
a jovem. Apesar de surgirem algumas poucas oportunidades dele sentar-se ao lado
dela, sua timidez e o medo de ser rejeitado ou do que os outros passageiros
poderiam pensar.
Aconteceu,
então, de não mais encontrar a jovem durante seu percurso matinal em direção ao
trabalho. No começo, preocupou-se. Imaginou novamente um acidente e,
posteriormente, a possibilidade dela haver mudado de emprego. Dia após dia
aguardava em vão, até que passou a utilizar-se das outras linhas de ônibus. Diz
um velho ditado popular que quem está longe dos olhos está longe do coração e
Afonso constatou essa verdade, pois após a saudade de sua jovem enamorada, sua
imagem foi relegada ao esquecimento.
Afonso
continuava casado com Susana, embora não mais a considerasse uma pessoa
importante em sua vida. Porém, não se sentia seguro para abandoná-la, receando,
ainda, ficar só, não conseguindo encontrar outra pessoa devido à sua timidez.
Passou a assumir, em relação à esposa, uma atitude de passividade, não mais
discutindo quando discordavam sobre algum assunto, como estava acontecendo em
um passado recente. Assim que se iniciava uma divergência, seu mutismo fazia-se
presente. Devido a essa sua atitude, o relacionamento entre ambos foi-se
estabilizando e um certo carinho voltou a haver entre eles.
Recentemente, ao dirigir-se para o seu serviço, Afonso
olhou para a porta traseira do ônibus e viu aquela jovem de meses atrás
subindo. Olhou para ela durante alguns segundos, tentando forçar a atração que
sentira a pouco tempo, mas
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