ORIGAMI

            Após um domingo repleto de atividades na Igreja, com missas, almoço, eventos e visitas, entrei na casa paroquial já passando das dez da noite, cansado e ao mesmo tempo feliz e realizado não apenas por me sentir útil, mas principalmente por sentir-me amado e acolhido em meu amor de padre junto ao povo.
            Esperava poder fazer um pequeno lanche, deitar, dormir e, na segunda-feira, sair para passear e espairecer, recobrando as forças para mais uma semana de trabalho pastoral na paróquia. Sim, porque a segunda-feira é conhecida, entre o clero da Igreja católica, como o "dia do padre"; é o seu dia de descanso, já que o Domingo é o dia em que mais atividades envolve o sacerdote. Entrando em casa, logo minha atenção foi chamada pelo toque do celular, avisando-me que havia recados. Entre diversas ligações perdidas, havia o registro de oito ligações de meu pai. Como ele raramente me telefona, retornei imediatamente suas ligações, pois provavelmente era algum assunto sério.
            Resumidamente, ele me disse que uma mulher havia me procurado em sua casa dizendo ser sobrinha de uma antiga professora de Português que eu tivera a quase quarenta anos atrás, no meu primeiro ano de Ginásio, Eliana Rossi.
            No mesmo instante, a imagem da professora loira, quarentona, solteira, meticulosa, aparência séria, elegante mas um pouco fora de moda já para aquela época, óculos com aro de gatinho anos sessenta e lentes esverdeadas veio-me à mente. Eu fizera parte de sua última turma, pois ao retornarmos às aulas no ano seguinte soubemos que a professora Eliana havia se casado com um senhor viúvo e que deixara o magistério. Nunca mais eu ouvira falar dela.
            A mulher que fora à casa do meu pai levara uma fotografia com a minha turma, na qual eu aparecia. Num papel amarelado, estava escrito em letras harmônicas o meu nome e o endereço da casa onde meu pai ainda vivia. Ela dissera que a professora Eliana estava morrendo devido a um câncer e que, olhando as fotografias de suas turmas, achara o papel com meu nome e endereço e pedira à sobrinha que tentasse me localizar, desejando ver-me. Achei estranho e perguntei a meu pai se ela dissera isso mesmo, que desejava ver-me e ele confirmou, dizendo ainda que a mulher pedira urgência, uma vez que os médicos haviam dado à tia poucos dias de vida.
            Decidi, então, ir a São Paulo no dia seguinte, sacrificando meu dia de descanso por uma causa julgada nobre e inadiável.
            Saí de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense logo cedo, pegando a rodovia Presidente Dutra por aproximadamente cinco e poucas horas até chegar a São Paulo. Durante o trajeto, sozinho comigo mesmo, fui recordando fatos completamente adormecidos na memória.
            1970. Havia acabado de perder minha mãe e estava começando uma nova etapa da vida, saindo do Primário e ingressando no Ginásio. Não mais uma única professora dando todas as matérias, mas diversos, cada um na sua especialidade: Português, Matemática, Ciências, História, Geografia, Francês, Educação Física, OSPB. Dentre os professores, Eliana Rossi.
            Todos comentavam que ela era uma solteriona cheia de manias estranhas, que nos faziam rir na sua ausência, mas tremer de medo durante as aulas. Seríssima, não admitia bagunça na sala. Nunca elevava a voz; quando nós, alunos, falávamos demais, ela tirava um pequeno sino da bolsa e o tocava. Silêncio imediato. Certo dia, um colega não parou de falar mesmo após o sino. A professora Eliana tirou um rolo de esparadrapo da bolsa, cortou um pedaço com a ajuda de uma pequena tesoura e colou-o na boca do aluno. Após um silêncio inicial, todos começaram a rir, até ela, sempre tão séria. Mas o toque do seu sino logo trouxe a ordem novamente à sala. O giz, ela o cortava com a ajuda dessa tesoura. Uma luva rendada protegia a pele das mãos da poeira do giz, evitando que ressecasse. Brincos e colares da segunda metade da década de sessenta, um tanto exagerados, mas que fora moda poucos anos antes, adornavam sua face sempre maquilada, os cabelos loiros curtos e armados à base de bob e laquê.
            Enquanto dirigia rumo a São Paulo, lembrei-me da primeira vez que eu vira um origami. Uma cegonha feita de papel. Achei a coisa mais linda do mundo. A professora Eliana gostava de fazer dobraduras de papel e levara a cegonha para seus alunos verem. Eu fiquei tão fascinado com aquela arte oriental, que fiz uma série de perguntas sobre o origami, que ela foi respondendo com satisfação. Enfim, disse-me que qualquer dia levaria o livro de dobraduras para me mostrar.
            Naquela época havia um código de conduta na escola que nem precisava ser ensinado; todos pareciam saber o que era proibido e o que devia ser respeitado. Sair da sala durante a aula? Impensável! Quando, certa vez, estando eu com uma dor de barriga que tornava inadiável a ida ao banheiro, pedi em sussurro ao ouvido de uma professora que me deixasse sair por um instante - e contei-lhe a razão -; ela olhou-me admiradíssima e disse-me que podia ir, já que eu nunca antes havia pedido isso. Se a porta da sala dos professores estivesse aberta, um aluno jamais ousaria invadir aquele espaço com seu olhar curioso. Interromper uma aula para chamar um colega sequer passava pelas nossas cabeças. Por isso comecei a recordar, enquanto dirigia, o dia em que, durante uma aula que nem lembro de que matéria era, percebi um movimento estranho no corredor. Quando virei o rosto para ver o que era, avistei a professora Eliana acenando para mim; ao ver-me, sorriu e mostrou-me o livro de origamis que ela havia trazido. Um sorriso aberto iluminava seu rosto, sorriso esse que eu devolvi espontânea e sinceramente. Acenei com a cabeça e voltei minha atenção para a aula que estava tendo.
            Nunca eu havia refletido sobre aquela cena, mas agora, já adulto, caminhando para a velhice, reconheci a importância daquele gesto da professora. Ela, tão metódica, séria, rígida, ousara romper seu comedimento para partilhar o encanto com o origami, com uma alegria quase infantil que não podia esperar o final da aula. Uma atitude hoje tão insignificante, mas que para a época fora quase uma revolução comportamental, não tivesse se restringido apenas a nós.
            Chegando ao endereço que meu pai me havia passado, entrei em um elegante edifício nos Jardins. Após ser anunciado pelo porteiro, subi até o décimo primeiro andar e fui recebido por uma mulher jovem e cordial, de aproximadamente trinta anos, que apresentou-se como a sobrinha que me procurara em casa de meu pai. Antes de levar-me ao quarto onde sua tia repousava, a jovem mulher falou-me da alegria que sentira ao descobrir que naquele antigo endereço pode me localizar. Sua tia andava muito aflita, sentindo a necessidade de encontrar-se com algum aluno seu antes de morrer. E com o único endereço que ela havia guardado havia-me localizado.
            Entrei no quarto. Uma senhora idosa, muito magra, cabelos brancos ralos, rosto enrugado, boca murcha, olhos encovados e as mãos... mãos finas, manchadas pela idade, pele ressecada. Um breve e rápido pensamento passou-me pela cabeça: as luvas, em sua época de professora, podem ter protegido aquelas mãos, mas da ação do tempo nenhuma luva o faz.
            Aproximei-me da cama e toquei levemente aquelas mãos marcadas pelos anos. A professora Eliana abriu os olhos e após alguns instantes tentou sorrir. Sorri-lhe de volta, apertando-lhe a mão levemente e beijando sua testa.
            - Você nem deve se lembrar de mim, não é? - disse-me fracamente.
            Segurando em sua mão e mais uma vez apertando-a com cuidado, respondi-lhe:
            - Confesso que há muitos anos não penso na senhora, mas assim que meu pai me telefonou dizendo que a senhora gostaria de me ver, recordei-me de muitas coisas que estavam adormecidas na lembrança a quase quatro décadas.
            - Muito tempo... muito tempo... - repetiu a professora Eliana.
            - Sim... muito tempo... - ecoei.
            Fez-se silêncio entre nós. Após uns instantes de olhos fechados, a professora os abriu. Foi minha vez de lhe perguntar:
            - Mas a senhora teve tantos alunos nos anos em que lecionou... não acredito que se lembrou justamente de mim! Por que me procurou e não a outros?
            Olhos fechados, demonstrando cansaço. Ela os abriu novamente. Sorriu-me.
            - Você é padre agora, não?
            Acenei afirmativamente com a cabeça, sem largar sua mão.
            - Então também confesso que não me lembrava de você. Depois que me casei e deixei o magistério, guardei todas as lembranças que eu acumulei em mais de vinte anos como professora e me dediquei ao meu marido. Um bom homem...
            Fechou os olhos e permaneceu longamente em silêncio. Quando os reabriu, continuou.
            - Ele morreu a dezoito anos. Nunca mais minha vida foi a mesma. Não tivemos filhos. Eu já não os podia ter quando nos casamos.
            Novo fechar de olhos e silêncio. Eu apenas ouvindo.
            - Nos últimos anos tenho pensado muito em minha vida. Parece-me tão inútil. Se eu não tivesse nascido, o mundo seria exatamente igual. Nem filhos eu tive... não gerei... morro e não me perpetuo em ninguém...
            O silêncio dessa vez foi tão longo que julguei-a adormecida. Ao tentar largar sua mão, abriu os olhos, dizendo:
            - O mais próximo de filhos que tive foram meus alunos. - E dizendo isso, apontou-me para um álbum de fotografias em cima da cômoda. Fui até ela e o trouxe.
            - Abra... abra... - ordenou-me.
            Abri e folheei-o. Somente fotos de alunos uniformizados, tendo ao lado esquerdo a professora Eliana. Olhei foto por foto e pude ver a vida passando e moldando a aparência daquela mulher nas fotos. Cheguei à última e reconheci imediatamente a minha turma.
            Lembrei-me que no último dia de aula, em 1970, a professora trouxera um fotógrafo profissional para fotografá-la com nossa turma. Ela disse que tinha foto de todas as suas turmas anteriores. Quarenta anos depois eu confirmava essa afirmação.
            Olhei detidamente para cada rosto da foto. Não me recordava da maioria deles. Sorri ao reconhecer alguns e mais ainda ao lembrar do nome de dois: Ângelo e Jorge. Cheguei a pronunciar seus nomes em voz baixa. Acima da minha foto, estava escrito meu nome. Em um papel amarelado, meu nome completo e o endereço da minha casa paterna.
            -  Reconhece a letra? - perguntou-me a professora, ao perceber que eu estava com o papel amarelado em mãos.
            - É sua? - perguntei-lhe. Mas imediatamente eu mesmo respondi: - Não... é minha! - exclamei alegremente surpreso ao reconhecer uma letra caprichada, redonda, que perdi com os anos.
            Então me lembrei do dia em que eu dei à professora Eliana o meu endereço para que ela fosse em casa visitar-me para me ensinar a fazer... origami.
            Depois daquele dia em que ela acenou-me corajosamente do corredor, mostrando-me o livro de origami, este ficava sempre sobre sua mesa, a um canto, junto com uma cegonha de papel, a dobradura que tanto ela quanto eu mais apreciávamos e que também mais caracteriza essa arte oriental. Quando eu tinha um tempo em sala de aula, já tendo terminado os exercícios e aguardava o término pelos colegas, ela deixava-me folhear o livro com inúmeras figuras que me embeveciam. Eu um dia perguntei-lhe ao ouvido se não podia me emprestar o livro. Ela, também sussurrando, respondeu-me que não, senão teria de fazê-lo para outros também e temia que o estragassem, perdessem ou não devolvessem. Fiquei triste com sua resposta. Mas ela puxou-me para si e disse ao meu ouvido: "Se você me der seu endereço, um dia nas férias vou à sua casa e faremos juntos algumas dobraduras". Abri um imenso sorriso e na mesma hora voltei à minha carteira, bem à frente da mesa dela, cortei um pedaço da última folha do caderno, escrevi meu nome e endereço e o dei à professora Eliana. O mesmo papel que, quarenta anos depois, eu tinha à mão.
            Ela nunca foi à minha casa. Naquelas férias, eu esperei por ela nos primeiros dias, mas como ela não vinha, fui-me envolvendo nas brincadeiras com meu irmão e com meus amigos da vizinhança.  Quando se aproximava o final das férias e o início do novo ano letivo, lembrei-me dos origamis e da professora Eliana. O final das férias sempre deixava nostalgia e retomar o ritmo das aulas era difícil, mas naquele ano eu estava ansioso para que as aulas recomeçassem para que eu pudesse ver a professora Eliana.
            Os professores foram entrando nas salas de aula, segundo os seus horários e, para minha surpresa, uma outra professora de Português veio dar-nos aula. Eu não me contive e logo perguntei a ela:
            − E a dona Eliana? Por que ela não vai dar aula pra gente?
            Sem querer eu devo tê-la constrangido. No entanto, ela, sorrindo, disse:
            − Eu tenho uma boa notícia para vocês: a professora Eliana vai-se casar!
            Foi um alvoroço. Parecia que o mundo todo, e não apenas a nossa classe, estava comentando o casamento da professora Eliana. O que mais chamava a atenção dos alunos é que ela era velha demais para se casar. Devia ter um pouco mais de quarenta anos, o que para nós, ainda muito jovens, era sinal de final de vida, de velhice. Eu não comentei nada e quase chorei com a notícia. Consegui, após muito esforço para que a nova professora me escutasse, perguntar se a professora Eliana não viria se despedir de nós. A resposta foi negativa. Ela estava ocupada com os preparativos do casamento e já havia pedido a sua demissão da escola. Eu nunca mais a vi e só soube, dias depois, que ela havia conhecido um senhor viúvo e que resolveram se casar.
                Entre esse dia na escola e o reencontro com a professora Eliana quatro décadas se passaram. E estranhamente, em sua presença, eu estava me sentindo o menino de onze anos que a muito havia crescido. Ainda segurando as suas mãos fragilíssimas, perguntei-lhe com carinho:
                − E o que eu posso fazer pela senhora, professora?
                Ela voltou os seus olhos para mim, olhos claros e opacos, quase sem vida, respondendo-me com dificuldade:
                − Eu sinto que a minha vida foi inútil, que não serviu a ninguém somente a mim e a meu marido. Será que eu fiz diferença na vida de mais alguém?... dos meus alunos?... ou ao menos na tua vida?
                Meus olhos se encheram de lágrimas diante daquela mulher que estava terminando os seus dias na terra, procurando algum sentido em sua vida. Como padre, eu tinha obrigação de dar-lhe algum conforto em seus últimos momentos, mas o que eu respondi não foi como padre, mas como aluno daquela mulher. E eu fui completamente sincero no que eu lhe disse, pois havia viajado horas recordando a minha professora de quarenta anos atrás.
                − Professora, lembra-se dos seus origamis?
                Ela esboçou um sorriso e moveu levemente a cabeça.
                − Origami... tão lindo... tão delicado... origami... como eu gostava dele...
                Silenciou longamente, com os olhos fechados e eu não tive coragem de falar-lhe para não lhe incomodar. Quando abriu os olhos e voltou a falar, olhou-me e disse:
                − Sim... o origami... você me pediu o livro... eu prometi ir na tua casa... perdoe-me... eu nunca cumpri a minha promessa... por isso tenho o teu endereço... desculpe-me nunca ter ido...
                − Não há o que se desculpar, professora. A senhora me deu muito mais do que eu poderia esperar.
                − Isso... me diga... o que eu te dei?... o que você recorda?...
                E contei a ela o que me lembrava do origami e do dia em que ela me chamara a atenção no corredor para o livro que havia saído, naquela época de tantas regras na escola. Eu contei emocionado e sorrindo, e ela sorriu mais intensamente nesse momento.
                − Enquanto eu vinha para cá, fiquei pensando no significado de seu gesto. Aprendi – e só hoje tomei consciência disso – que pequenos gestos de carinho e amabilidade marcam a vida das pessoas e as tornam mais felizes. Sabe, professora, eu, como padre, procuro valorizar os pequenos gestos no dia a dia com meu povo. Procuro aprender os nomes de meus paroquianos e de seus familiares, saber onde moram, acolhê-los à porta da igreja com um sorriso e um abraço, comentar se cortaram o cabeço, ou se estão com uma roupa bonita, se parecem felizes, ou o porque de parecerem tristes... são gestos aparentemente insignificantes, mas que confortam e alegram as pessoas mais do que uma bela homilia. E sabe o que eu descobri hoje? Que a senhora foi, em grande parte, responsável por eu ser assim. Aquela tua atitude naquele dia em que me mostrou o livro de origami, deixou-me profundamente feliz e eu recordo que a senhora também estava feliz, tão feliz que não pode esperar o momento da aula para o mostrar a mim. Sabe a que chamo isso? Amabilidade! A senhor me ensinou, não com palavras, mas com um pequeno gesto, que a amabilidade torna as nossas vidas mais felizes. Se sou um padre amável, devo muito à senhora. Hoje tenho consciência de que a senhora me ensinou mais sobre relações humanas com teu gesto, do que a leitura de muitos livros de teologia e antropologia. Não me pergunte nada sobre análises sintática ou morfológica, pois a teoria se perdeu no tempo. Mas o teu gesto, adormecido por décadas em minha memória, ainda está vivo.
                Emocionado, eu concluí:
                − Obrigado, professora, por existir e ter passado pela minha vida.
                A professora Eliana, com uma lágrima escorrendo pelo seu rosto encovado, sussurrou:
                - Obrigada digo eu... muito obrigada... você não imagina a alegria que suas palavras me deram.
                Ficamos parados e silenciosos, sua mão na minha, até que ela adormeceu. Larguei sua mão, despedi-me da professora Eliana com um beijo na mão e outro na testa, e deixei-a com sua sobrinha.
                Poucos dias depois, chegou à casa do meu pai uma carta, que ele me remeteu em seguida. Nela, a sobrinha disse que a tia havia falecido na madrugada seguinte à minha visita, durante o sono, em paz. Acompanhava a carta a fotografia de minha turma, o endereço da casa do meu pai com minha letra arredondada e infantil e... um pelicano em origami.



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